Esta reportagem de Luciana Araújo foi extraida da edição Especial sobre Educação da revista Caros Amigos. Traz diferentes pontos de vista sobre os programas de inclusão social na universidade, como o ProUni, o Fies. Além de possíveis alternativas na tentativa de diminuir as desigualdades no acesso ao ensino superior das camadas sócio-economicas menos favorecidas .
A democratização da universidade brasileira ainda é uma perspectiva muito distante para a imensa maioria da população. Atualmente, ínfimos 3% dos jovens com idade entre 18 e 24 anos chegam ao ensino superior público. Somadas as matrículas do setor privado, apenas 13,9% dos jovens brasileiros conseguem ingressar num curso universitário, segundo dados da Síntese de Indicadores Sociais, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em outubro de 2009. Embora esse número tenha dobrado nos últimos dez anos, o Plano Nacional de Educação em vigor estabelece que 30% da juventude brasileira nessa faixa etária deveria estar matriculada no ensino superior em 2011. Mas já se discute a postergação desta meta para 2020.
Analisando a composição das matriculas do ensino superior, verifica-se que a situação é ainda menos democrática, tendo em vista que esse conceito embute a garantia de direitos políticos equânimes entre a população.
De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação em vigor no país, universidades são instituições que disponibilizam cursos em ao menos cinco áreas de conhecimento gozando de autonomia financeira e administrativa – para abertura de novos cursos e campi por exemplo – além de oferecerem ensino indissociado da pesquisa científica e da extensão (conjunto de políticas de integração e socialização de conhecimentos com a comunidade na qual a instituição está inserida) e programas de pós-graduação scritu sensu (mestrados e doutorados). O quadro de docentes das universidades deve ser composto por, ao menos, um terço deles contratados no regime de dedicação integral. Cabe às universidades o papel de espaços de formulação de políticas visando o desenvolvimento nacional.
Já os centros universitários, institutos de superiores e faculdades não são obrigados a ofertar programas de pós-graduação ou desenvolver pesquisa e extensão. E na ampla maioria dessas instituições o ensino é de qualidade no mínimo duvidosa. No entanto é por meio delas que vem se concretizando a maior parte da expansão deste nível educacional.
O número de vagas federais dobrou entre 2003 e 2010, atingindo o patamar de 200 mil, com a abertura de 14 novas universidades federais e 126 novos campi, mas a rede de ensino superior pública do país ainda representa somente 25% do total de matrículas ofertadas (ver Gráfico). De acordo com o PNE em vigor, 40% das matrículas ativas de terceiro grau deveriam ser ofertadas por instituições públicas este ano.
SISTEMA ESTILHAÇADO
A presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes), Marina Barbosa Pinto, é taxativa ao afirmar que essa realidade é produto do modelo educacional pelo qual os sucessivos governos optam ao longo da história do país, especialmente a partir da ditadura militar. “Temos um sistema educacional estilhaçado em ilhas nos municípios e estados, as universidades públicas estão em condições precárias e são obviamente insuficientes par atender às necessidades do país. Por isso, a universalização da educação pública irá requerer fortes investimentos em infraestrutura (escolas com padrão de construção adequado aos seus fins, com laboratórios, bibliotecas, quadras esportivas etc.), piso salarial, carreira docente e dos técnicos e administrativos que permitam dignidade as trabalho do servidor público. Quanto as entidades acadêmicas e sindicais elaboram o Plano Nacional de Educação – proposta da Sociedade Brasileira, concluímos que orçamento publico para alcançar esses objetivos deveria corresponder a 10% do PIB. Sem isso, teremos sempre um sistema que institucionaliza o apartheid educacional”.
Hoje ], o Brasil aplica apenas cerca de 4% do Produto Interno Bruto (soma de todas as riquezas produzidas em um ano) na educação pública. E apenas um quarto desse montante tem origem no Orçamento da União, que arrecada 60% das receitas tributárias no país.
Para o presidente da União nacional dos Estudantes, Augusto Chagas, o país ingressou no rumo certo. “A UNE acredita que iniciamos um processo nos últimos anos, na direção da democratização da universidade. Nossa dívida acumulada é muito significativa. O caminho da democratização é expandir a oferta de vagas públicas”, atesta. Marina Barbosa discorda. “O Andes compreende que a democratização das oportunidades de acesso à universidade não se esgota apenas na abertura de vagas”.
Outro especialista em educação que tem a mesma opinião é o senador Cristovam Buarque (PDT-DF), ex-diretor da Universidade de Brasília e ministro da área no primeiro governo Lula, entre 2003 e 2004. “Não se democratiza a universidade por cima. Só na educação de base é que a gente democratiza a universidade. E aí não houve nenhum avanço”, afirma.
Para o coordenador da União de Núcleos de Educação Popular para Negros e Negras e Classe Trabalhadora (Uneafro), Douglas Belchior, o principal problema é o avanço da vertente privada. “Quase 10 mil novos cursos em faculdades particulares foram autorizados pelo governo entre 2002 e 2008. O resultado desse crescimento foi o aumento das vagas ociosas, que pularam de 500 mil para 1 milhão e meio em seis anos. E o mesmo ProUni, que numa primeira análise se configura como uma oportunidade histórica de acesso de classe trabalhadora ao ensino superior, é também o programa que salva da falência grande parte desse verdadeiro mercadão universitário”, diz.
QUESTIONAMENTOS
O portal do Ministério da Educação disponibiliza desde o inicio deste ano o “Balanço da Gestão da Educação 2003-2010”. O documento destaca entre as principais medidas adotadas pela expansão de vagas federais, potencializada pelo Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão Universidades Federais (Reuni) a partir de 2007; o Programa Universidade para Todos (ProUni); e a reformulação do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), com a redução de juros e a dilatação dos prazos de pagamento, eliminação da exigência de avalista e a possibilidade de que os estudantes de medicina amortizem 1% da dívida consolidada por mês trabalhando na rede pública.
O ProUni atendeu 748 mil estudantes desde a sua criação em 2004, de acordo como MEC, mas recebe muitas críticas embora divida opiniões.
Entre os entrevistados, a censura mais veemente ao modelo vem do Andes, que também tem posição contrária ao Reuni. “Os dois programas estão reconfigurando a educação a educação superior brasileira para pior, com conseqüências duradoras. O ProUni subsidia com verbas públicas um conjunto de organizações mercantis de venda parcelada de diplomas as quais, se houvesse regulamentação pública, não estariam funcionando, tal a precariedade de seus cursos”, diz a presidente do sindicato. Marina Barbosa questiona também a efetividade do programa. “Pouco mais da metade das bolsas anunciadas são realmente ocupadas. No inicio do ProUni, só 77%, em 2008 o percentual despencou para 58%. Assim, das 610 mil bolsas ofertadas entre 2005 e 2008, apenas 385 mil foram preenchidas. Os cursos pretensamente democratizados, anunciados a peso de ouro nas peças publicitárias do governo, como o de medicina correspondem a irrisórios 0,7% das bolsas”, diz.
Marina critica o Reuni pela ampliação de vagas sem o aporte necessário de financiamento público que, segundo ela, resultou na superlotação de salas de aula e no aumento da exploração a docentes e técnicos administrativos. De acordo com Barbosa, as vagas de concurso abertas no último período deram conta apenas de suprir a demanda causada por aposentadorias e exonerações.
O coordenador da Uneafro relata que “muitos cursos oferecidos por instituições de ensino superior conveniadas ao MEC via ProUni são realmente muito ruins. E são justamente esses, onde a nota de corte para obtenção da bolsa é menor, que a maioria dos estudantes de escolas públicas, filhos de classe trabalhadora, negros, acabam acessando”. Isso, somado à dificuldade no controle e fiscalização, acaba por não assegurar que o benefício seja efetivamente destinado aos mais pobres.
O senador Cristovam Buarque comparou a discussão sobre os dois programas as processo de extinção do modelo escravista no Brasil. “Eu não sou contra nenhum desses programas. Da mesma maneira que, se estivéssemos conversando ali por 1880, eu não seria contra a Lei do Ventre Livre, nem a Lei dos Sexagenários. Mas, nada disso se compara com a abolição da escravatura. Essas medidas são quase democratizantes, mas só tem uma maneira de democratizar a universidade: é a educação de base ser boa e igual para todos”.
Entre os que avaliam o programa é um avanço, o presidente de honra da educafro, Frei David, afirma que “o ProUni está provando ser o programa mais eficiente para realizar a inclusão da nossa comunidade negra nas universidades”. A Educafro é uma rede de cursinhos pré-vestibulares para estudantes negros e carentes que funciona há 20 anos.
Frei David critica a falta de fiscalização e denuncia o superfaturamento do valor cobrado ao governo federal pelas instituições de ensino conveniadas no ProUni. “A instituição registra no MEC que o curso de Administração, por exemplo, custa 1.200 reais por mês. Só que ela cobra dos pagantes só 450 reais, inventando que a diferença é um desconto especial. Na hora de cobrar do MEC, no ProUni e no Fies, ela cobra em cima do preço superfaturado de 1.200 reais. Estão sangrando os cofres públicos”, diz. A Educafro ingressou com representação junto as Ministério Público solicitando apuração desta denúncia.
Em relação à qualidade do ensino ministrado pelas conveniadas pelo ProUni, Frei David critica o fato do governo ter cedido ao “lobby dos deputados federais donos ou cujas campanhas políticas foram ou são financiadas pelas faculdades particulares”, que derrubou a proposta de que só poderiam conveniar-se instituições que recebessem ao menos grau 3 nas avaliações promovidas pelo MEC. Mas David ressalta sua opinião de que “as instituições de qualidade duvidosa não passam de 5% do conjunto. Por isto, tenho convicção de que compromete este belo programa”.
O presidente da UNE concorda. “O ProUni vai nessa direção (da democratização). Nós devemos chegar a um milhão de estudantes beneficiados. E é uma parcela da população que historicamente estava excluída de ensino superior”, ressalta Augusto Chagas.
Para os entrevistados, os programas de reserva de vagas para estudantes oriundos da rede pública do ensino médio e as cotas raciais são os pontos que têm avaliação positiva.
Marina Barbosa ressalta que “entendemos que as políticas que assegurem a universalização não podem partir de um falso universalismo liberal, segundo o qual o mérito é um crivo igual para todos, como se a sociedade fosse de iguais em direitos”.
ALTERNATIVAS EM DEBATE
Caro Amigo perguntou aos entrevistados quais seriam as alternativas para efetivar a democratização da universidade brasileira. Para representante da Educafro, o governo federal deveria instruir como parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), uma bolsa-auxílio no valor de um salário mínimo para todos os alunos do ProUni, do Fies e os beneficiados por bolsas integrais concedidas pelas próprias faculdades com renda familiar de até um salário mínimo e meio. A rede de cursinhos propõe, ainda, que os alunos possam solicitar o financiamento estudantil individualmente, e não por meio das faculdades, para permitir que a verba possa ser utilizada no custeio das despesas com transporte, compra de livros etc. E defende ainda que o MEC incentive as universidades que oferecem curso de medicina a abrir turmas voltadas para bolsistas do Fies, incorporando ao currículo conteúdos programáticos voltados para a formação de médicos da família.
A Uneafro defende a garantia de amplo acesso à educação pública (com a construção de novas universidades e investimentos em políticas de assistência estudantil), valorização dos profissionais de educação, efetivação de políticas de ação afirmativa para negros e indígenas em toda a rede publica de ensino superior, reformulação das diretrizes acadêmicas para garantir uma formação comprometida com a soberania e a valorização da diversidade cultural e étnica brasileira. E, como forma de permitir que essas medidas se efetivem, o aumento do investimento em educação para a ordem de 10% do PIB.
Para a Une, é necessário amadurecer o mecanismo do vestibular, aprofundando a consolidação do ENEM (Exame Nacional de Cursos) em um sistema de avaliações periódicas; garantir 10% do PIB e a destinação de metade do fundo social a ser construído com os lucros do pré-sal para a educação; criar um programa nacional de bolsas para universitários de baixa renda; e garantir que o passe-livre ou a meia passagem seja assegurado a todo estudante universitário.
O senador Cristovam Buarque defende a criação de uma carreira nacional do magistério que abarque os professores de todas as redes de ensino (mesmo quem leciona em instituições privadas seria servidor público); e a criação de uma rede de escolas federais com padrão de ensino baseado em colégios como o Pedro II.
Para a Andes, além da valorização dos profissionais e investimento, é preciso uma política de assistência estudantil universalizante (garantia de moradias estudantis decentes, bolsas de manutenção, bibliotecas com funcionamento nos finais de semana e horários estendidos para atender ao aluno trabalhador etc).
Todas essas propostas devem ser apresentadas no debate sobre o novo Plano Nacional de Educação, que vem sendo construído a portas fechadas no Congresso Nacional. À população fica como lição de casa a necessidade de participar na discussão, a fim de buscar concretizar uma política educacional que faça do acesso à universidade uma perspectiva real nas vidas dos brasileiros.