quarta-feira, 30 de março de 2011

Recorde de Mortes em Hospitais Psiquiátricos de Sorocaba


Texto desta semana é uma reportagem sobre os manicômios de Sorocaba da revista "Caros Amigos" sugerida pelo Professor Marcos Garcia, para saber mais sobre o assunto acesse o blog do Flamas (Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba).



O Forum de Luta Antimanicomial considera o número insuficiente de funcionários como uma das principais causas dos óbitos; psiquiatra, filho de dono de hospital, admite que instituições não cumprem legislação federal.

Denúncia do Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba (Flamas) revela número alarmante de mortes entre pacientes internados em hospitais psiquiátricos do município, no interior de São Paulo. O estudo produzido pela organização aponta 233 mortes nos quatro hospitais psiquiátricos da cidade durante o quadriênio de 2006 a 2009.
O Hospital Vera Cruz lidera a lista macabra. Sozinho, o estabelecimento registrou 102 mortes nesse período. O pico foi verificado em 2008, quando foram registrados 40 óbitos entre seus pacientes. Na sequência, aparecem os hospitais Mental, com 46 mortes, seguido de perto pelo Teixeira Lima, com 45, e o Jardim das Acácias, com 40.
A explicação para o número elevado de mortes entre os pacientes internados é o de que essas instituições operam com número reduzido de funcionários no atendimento aos doentes. “O número de funcionários está abaixo do que a legislação determina”, revela o psicólogo Marcos Garcia, do Flamas.
O psiquiatra Carlos Eduardo Zacharias, filho de um dos donos do Vera Cruz, reconhece que o hospital opera com número de funcionários inferior ao previsto na legislação federal, mas nega que esse seja o elemento causal dos óbitos. “Nenhum hospital do país consegue respeitar o que a legislação pede”, admite.
Ele exime os estabelecimentos psiquiátricos privados da culpa pelo número de funcionários reduzido e joga a responsabilidade no colo do Executivo. “O governo não paga o suficiente para colocar mão de obra lá dentro. Só para botar o pessoal que a portaria determina, dá 1,16 vezes o que o hospital recebe do SUS", critica.
O Flamas questiona essa versão. “No Brasil, os donos de hospitais psiquiátricos ganham muito dinheiro. Dominam a Associação Brasileira de Psiquiatria e constantemente soltam relatórios criticando a política de saúde mental do governo. Choram miséria", frisa o psicólogo.
O exemplo apresentado por Carlos Eduardo para justificar a falta de funcionários nos hospitais psiquiátricos é esdrúxulo. “Quantos hotéis se consegue achar em São Paulo por R$ 35 ao dia?”, questiona. Segundo ele, o governo federal repassa entre R$ 35 e R$ 45 por paciente/dia. “O hospital tem de ter cama, lavanderia, fora a hotelaria, tem a manutenção e o pessoal (funcionários da folha de pagamento)”, afirma para criticar o baixo valor que estaria sendo repassado aos donos de hospitais.
O psiquiatra ressalta que corre na Justiça, em Brasília, uma ação impetrada pela Federação Brasileira de Hospitais contra o Ministério da Saúde. Nela os proprietários de hospitais psiquiátricos alegam que há desequilíbrio econômico-financeiro entre o valor pago pelo Executivo e o que os proprietários gastam no tratamento dos pacientes.
Ele informa que o Hospital Vera Cruz possui 12 psiquiatras. “Dá para atender a 480 pacientes (o total de leitos na instituição é de 490). Em termos de médicos, tem o suficiente para atender o que diz a portaria. Mas em termos de enfermagem você tem de conversar com o setor técnico. Teria de falar com o meu pai (Florivaldo Zacharias)", afirma desconversando.
De acordo com ele, para cada 40 leitos o hospital precisa de um psiquiatra. O número de leitos que são administrados pelos funcionários aumenta para as outras funções ligadas à saúde. São necessários quatro auxiliares de enfemagem. um terapeuta ocupacional e uma psicóloga para cuidar de 60 leitos.


MORTES

Carlos Eduardo afirma desconhecer o número de Óbitos que teriam ocorrido no hospital Vera Cruz. “Eu não sei, não tenho esse número. Você não está falando com a pessoa certa. A Secretaria Municipal de Saúde passou lá, avaliou o livro de óbitos e não encontrou isso que estão falando". afirma ao se referir à denúncia do Flamas.
Os dados apresentados no estudo realizado pelo Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba revelam que os Óbitos verificados na cidade são superiores ao de padrões internacionais, apesar de a metodologia empregada ser distinta à adotada em países estrangeiros.
Marcos cita, como exemplo, um hospital da Alemanha onde o número de mortes é de 0,5% por ano. O relatório do Flamas é taxativo: 'Há na cidade de Sorocaba um número muito maior de mortes do que seria o esperado. O número de mortes surpreende."
O psicólogo do Flamas conta que levou em consideração para efeito de análise, a comparação entre os três maiores manicómios do Estado de São Paulo: Araras. Itapira e Sorocaba, localizados em cidades do interior paulista. Ele constatou que “no hospital Vera Cruz morrem muito mais pacientes” do que em outras instituições.
“Quem é esse Flamas? Qual é o seu CNPJ? Entrei no sítio (da intemet) e não encontrei o nome do responsável. É um fantasma. Não existe juridicamente. Como pode sair por ai, dizendo isso ou aquilo. encoberto pelo manto da invisibilidade", critica Carlos Eduardo.
A metodologia utilizada pelo FLAMAS, que culminou no estudo, levou em consideração dados referentes ao Censo Psicossocial dos Moradores em Hospitais Psiquiátricos do Estado de São Paulo. Também foram consultadas informações do Datasus, o banco de dados do Sistema Único de Saúde, do CNES, o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, além do SIM, o Sistema de Informações sobre Mortalidade.
As informações financeiras foram obtidas por meio de consulta aos diários oficiais de Sorocaba, no caso dos hospitais psiquiátricos do município. Para as demais regiões a consulta abrangeu também o Diário Oficial do Estado. Os dados populacionais foram obtidos no Censo de 2010.


EXCLUSÃO SOCIAL

Sorocaba é a cidade brasileira com a maior concentração de leitos hospitalares psiquiátricos do país. Para um universo populacional de 586.311 moradores, em 20l0, o município do interior paulista dispunha de 1.369 vagas. O Hospital Vera Cruz responde por 490 leitos.
Esse número salta ainda mais se for ampliado para municípios da macro-região sorocahana e atinge a casa de 2.792 leitos, o que dá uma relação de 2.3 leitos por mil pessoas. O número é cinco vezes superior ao preconizado pela legislação do Ministério da Saúde. que determina um número máximo de 0,45 leitos por mil habitantes.
Carlos Eduardo contesta a informação e diz que os hospitais psiquiátricos do município atendem de 60% a 70% de pacientes de outras cidades. O que, segundo ele, diminuiria a relação de paciente/leito.
A concentração de hospitais psiquiátricos no município de Sorocaba surgiu nos anos 70, durante a ditadura militar, quando a regra era o internamento e confinamento de pacientes com problemas mentais.
Marcos conta que a lógica seguida pelos proprietários desses hospitais foi a da obtenção de retomo financeiro. “Os donos [de hospitais] começaram a ganhar dinheiro e expandiram o negócio”, explica.
Esses hospitais não pertencem a um único dono, são comandados por cotistas. Uma fonte que não quis se identificar revelou à reportagem da Caros Amigos que o secretário da Saúde de Sorocaba, Milton Palma, é cotista em três hospitais próximos ao município, em que está à frente da pasta.
Mas o conflito de interesses entre público e privado nâo se restringe apenas a esse caso. O próprio Carlos Eduardo Zacharias, filho de Florivaldo Zacharias, um dos donos do Hospital Vera Cruz, é o responsável pelo plantão psiquiátrico do Hospital Geral (público) da cidade. Cabe a ele direcionar os pacientes que serão internados no hospital de seu pai e dos demais proprietários da rede privada.
Segundo uma fonte que não quis se identificar, Carlos Eduardo alimentaria a demanda desses hospitais por pacientes. A pessoa afirma que considera complicado coordenar uma central de vagas e ao mesmo. tempo ser filho do dono de um desses hospitais privados. “Como e um ardoroso defensor de manicômios, vai achar que boa parte das pessoas que buscam atendimento psiquiátrico no hospital público tem de ser intemadas. Se o hospital privado tiver vaga, vai estar sempre cheio”, enfatiza a fonte.
“Estou com 12 pacientes aguardando vaga e não tenho para onde mandar", destaca Carlos Eduardo, durante entrevista à reportagem da Caros Amigos, ao se referir ao número elevado de pacientes para o total de leitos oferecidos.


LUTA ANTIMANICOMIAL

O modelo manicomial e contestado pelo psicólogo Marcos, que também e professor da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). O Flamas combate o formato de confinamento a que os pacientes são submetidos nessas instituições psiquiátricas. Para ele. trata-se de uma fórmula excludente. “Sorocaba tem uma política de saúde mental ultrapassada. Não passou pela reforma psiquiátrica (que defende o não intemamento em hospitais psiquiátricos)."
Os Conselhos Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP) e Federal de Psicologia (CFP) também tecem fortes criticas a esse modelo de internmento, que confina os pacientes em instituições fechadas. Para a conselheira do CFP, Maria Emiinia Ciliberti, é preciso reduzir o número de leitos para a internação involuntária. A psicóloga defende um modelo inclusivo, onde o paciente seja tratado de maneira integral. “Isolamento não é' tratamento”, enfatiza.
O representante do Flamas considera que a cultura de exclusão presente na sociedade sorocabana está no cerne para a perpetuação do município no topo do ranking nacional de leitos psiquiátricos por paciente. “Sorocaba é bastante conservadora do ponto de vista político e moral.” Ele explica que a diferença do município em relação a outras cidades “é que nos outros locais esses hospitais foram fechados, e aqui ainda não". lamenta.


DIRElTOS HUMANOS

O estudo desenvolvido pelo Fórum de Luta Antimanicomial de Sorocaba constata que a principal causa mortis de pacientes internados em hospitais psiquiátricos é o infarto. “A gente considera que essas mortes acontecem por outro motivo, mas (no atestado de Óbito) são registradas como infarto”, suspeita Marcos.
De acordo com ele, não estaria ocorrendo uma investigação adequada sobre o fator determinante que estaria levando essas pessoas ao Óbito. A suspeita é que. por algum motivo, não estariam sendo realizados os exames necroscópicos para a elucidação da morte.
“Se a pessoa falece de morte desconhecida deveria ser feita a autópsia, mas isso não acontece nos manicômios daqui. Nem no momento da morte (esses pacientes) são tratados com dignidade." Ainda de acordo com ele, o fato de vários pacientes não terem família faz com que não se realize esse procedimento de uma forma adequada. “Não estou acusando, mas essa é a impressão que dá”, frisa.
Já o psiquiatra Carlos Eduardo considera pertinentc o infarto aparecer como a causa dc maior incidência no número de mortes entre os pacientes psiquiátricos. “Tem usuários de drogas, pcssoas desnutridas. desidratadas. Há um grande risco de terem infarto do miocárdio."
Dados do relatório produzido pelo Flamas também relevam que há mortalidade precoce nos manicômios. “Mais de um quarto dos pacientes tem entre 17 e 39 anos. A média de idade é de 49 anos." Ainda segundo o relatório, pacientes psiquiátricos tem expectativa de vida de oito a 10 anos menor do que a população em geral.
“Levando-se em conta que a expectativa de vida no Brasil é de 69,4 anos para homens e de 77 anos para mulheres, seria esperada uma expectativa de vida de 60 anos para pacientes psiquiátricos homens e de 68 para as mulheres, significativamente acima dos dados obtidos nos manicômios de Sorocaba". Nesses manicômios a média é de 48 anos para os internos do sexo masculino e de 51 para as mulheres. Para o representante do Flamas, mais da metade dessas mortes que acontecem nesses hospitais poderiam scr evitadas.
O relatorio aborda também a violação aos direitos humanos que estariam ocorrendo dentro dos hospitais psiquiátricos. O texto destaca o fechamcnto do hospital Pilar do Sul, após vistoria da Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembléia Legislativa de São Paulo. Dentre as inúmeras irregularidades que seriam cometidas nesse manicômio, destacam-se “o uso da camisa de força. a existência de uma estaca onde os pacientes eram espancados. a falta de médicos, terapeutas ocupacionais e enfermeiros", além das péssimas condições de higiene.
Foi a partir desse caso que os membros do Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba resolveram realizar o levantamento dos indicadores sobre os hospitais psiquiátricos da região.

Lúcia Rodrigues é jornalista.

sexta-feira, 25 de março de 2011

O Brasil de Lula


Um ótimo texto em inglês publicado na London Review of Books escrito pelo historiador Perry Anderson da Universidade da Califórnia (UCLA), uma visão do governo Lula sem o viés contrário da imprensa nativa. Clique Aqui.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Texto de Marilena Chaui


Na postagem anterior foi disponibilizado um texto clássico da Profa Marilena Chaui. Para conhecer o currículo e a obra da Profa Marilena acesse a página dela no Departamento de Filosofia da USP clicando aqui.

Publico, privado, despotismo

Marilena Chaui
(...) Procuramos, em nosso percurso, assinalar as perplexidades contemporâneas quanto à relação entre a ética e a política, perplexidades que se exprimem no sentimento da “crise dos valores”. Fomos observando os esforços para a ampliação do espaço público e para uma presença cada vez menor da ética no campo da política, em decorrência da separação gradual entre esfera privada e esfera pública. Foi nesse percurso que mencionamos a paradoxal transformação da figura do déspota no pensamento conservador (de tirano perverso a revolucionário corruptor) e no pensamento liberal (de tirano passional a democrata faccioso). Finalizamos com a menção de alguns fatos da política dos últimos oitenta anos que poderiam ser assim resumidos: como explicar que a criação da esfera pública pelo pensamento desembocou na privatização administrativa (o surgimento das grandes burocracias estatais) e na privatização política trazida pelo neoliberalismo? Como explicar que o alargamento do espaço público, proposto pelas revoluções socialistas, desembocou na publicização totalitária e autocrática (que procurou absorver e destruir o espaço privado)? Como explicar que, nos dois casos, a política deixou de ser encarada como práxis (imanência entre meios e fins) e passou a ser praticada como técnica (exterioridade entre meios e fins)? Como explicar que a normatividade ética e o moralismo tenham se tornado os critérios para avaliar políticas? Evidentemente, não possuímos respostas para essas questões. Tentativamente, escolhemos um fio condutor para examinar apenas um aspecto das perplexidades atuais, aquele sugerido pela presença do neoliberalismo e do pós-modernismo e a maneira como aparecem no Brasil.
Via de regra, a discussão pós-moderna enfatiza a perda de força explicativa dos “paradigmas” modernos, isto é, de modelos teóricos e sobretudo de categorias como os pares ou as dicotomias sujeito/objeto, natureza/cultura, signo/ significação, totalidade/individualidade, público/privado, burguesia/proletariado, reforma/revolução, sociedade civil/Estado. Em resumo, todos os termos que empregamos até aqui perderam capacidade explicativa. Alguns consideram suficiente realizar a “desconstrução” dos conceitos. Outros estão à procura de novos “paradigmas”. Antes, porém, de prosseguirmos nas mazelas do pós-modernismo, vale a pena retomar algumas distinções que foram apenas sugeridas ao longo deste texto, sem que tivessem sido melhor explicitadas.
Até aqui, falamos em modernidade e modernismo como se se tratasse do mesmo fenômeno. Convém, agora, procurar distingui-los, no que for possível, uma vez que consideraremos o modernismo uma figura da modernidade (como, aliás, cremos ser o caso do pós-modernismo). Simplificando extremamente o que em si é de extrema complexidade, diremos que a modernidade é um projeto que se desenvolve durante o processo de desenvolvimento e queda do Antigo Regime ou das monarquias absolutas (cuja cronologia é diversa para os vários países europeus), enquanto o modernismo poderia ser datado a partir da revolução e da reação conservadora de 1848 e, finalmente, o pós-modernismo estaria datado a partir dos anos 70 de nosso século, sob os efeitos das mudanças do modo de produção capitalista (a chamada sociedade pós-industrial), do esgotamento da principal manifestação política do século (as revoluções comunistas) e do enfraquecimento de um novo sujeito político que entrou em cena nos anos 60 (a contracultura dos movimentos sociais).1
Ainda de modo bastante simplificador diremos que o liberalismo é o pensamento predominante da modernidade; o marxismo, do modernismo; e o neoliberalismo, do pós-modernismo (sendo sugestivo que o pensamento político se tome por uma espécie de revival — é “neo” — enquanto as artes, a cultura, as teorias e práticas sociais se tomem por uma superação — são “pós”).1
Diremos, por fim, que os modernos e modernistas estão convencidos de que é possível colocar o particular e o contingente sob as determinações do universal e do necessário, sem que isso os destrua em sua particularidade e contingência, mas fazendo-os ganhar sentido mediante a passagem pela universalidade e pela necessidade. Em contrapartida, os pós-modernos afirmarão a irredutibilidade do particular e do contingente e o caráter ilusório (mistificador e destrutivo) do universal e do necessário. Se obedecermos aos critérios dos “paradigmas”, diremos que o liberalismo opera com a lógica da identidade, o marxismo, com a contradição dialética, enquanto o pós-modernismo neoliberal invoca a lógica das diferenças para desfazer a antiga idéia da razão. Isso não significa que o liberalismo não tenha lidado com contradições e diferenças, mas sim que tratou as primeiras como conflito e as segundas como diversidade; nem que o marxismo não tivesse operado com identidades e diferenças, mas sim que considerou as primeiras como aparência e as segundas como momentos da contradição; nem, afinal, que o neoliberalismo não lide com identidades e contradições, mas sim que procura reduzir as primeiras e as segundas a ilusões racionalistas, isto é, as racionalizações da diferença. Em outras palavras, modernos e modernistas, na tensão entre essencial/acidental, efêmero/eterno, teriam feito a opção pela Essência contra a Aparência, enquanto os pós-modernos teriam feito a opção inversa, deslocando o lugar anteriormente atribuído à Ilusão. O liberalismo acusou o marxismo de haver promovido a síntese totalitária dos termos; o marxismo, por seu turno, demonstrou que o liberalismo forjou uma síntese fetichizada e alienante dos termos. O pós-modernismo critica ambos pela idéia mesma de síntese, tida como suprema violência desejosa de destruir a indeterminação do real.
Para nosso tema, interessa observar por onde passa o corte que separa liberalismo (moderno) e marxismo (modernista), de um lado, e neoliberalismo (pós-modernista), de outro. Esse corte passa pela intenção dos dois primeiros de fazer surgir e consolidar um espaço público e pelo abandono dessa intenção por parte do último. Alargamento do espaço público e encolhimento do espaço público distinguem modernidade e pós-modernidade. Evidentemente, como já observamos, a intenção liberal e ilustrada não pode cumprir-se porque a ética da utilidade e do interesse (a presença do mercado capitalista fundado na propriedade privada dos meios de produção), a fragilidade da teoria contratual do Estado (a substituição da liberdade pelas liberdades ou franquias), a crescente presença do Estado na sociedade civil (pela intervenção direta sobre a economia e pelo desenvolvimento de uma burocracia poderosa baseada na hierarquia e no segredo) e a submissão da opinião pública aos imperativos da sociedade administrada e da indústria cultural puseram em xeque os princípios ético-políticos do liberalismo (o Estado do bem-estar e a intervenção estatal na economia foram os sinais do fracasso liberal).
Por seu turno, o marxismo viu sua utopia emancipatória desmanchar-se sob os efeitos da burocratização e do totalitarismo. Se o liberalismo não pode evitar a crescente privatização do público (as liberdades, em lugar da liberdade; os contratos fundados no direito privado, em lugar do predomínio do direito público), o marxismo foi forçado a assistir a destruição da esfera privada pela invasão total do Partido e do Estado para produzir uma sociedade organicamente cimentada por um sistema de funções e controles, supostamente sem rachaduras, sem conflitos e sem diferenças internas. A sociedade unidimensional e administrada sob o tacão do Plano e dos serviços secretos de informação, a transformação dos indivíduos em Trabalhador Coletivo e militantes de células partidárias verticalizadas e ligadas a um centro onde o social, o político, a lei e o saber se tornaram idênticos, eis como a experiência totalitária destruiu tanto o espaço público quanto o privado.
O pós-modernismo neoliberal pretende dar as costas a esses dois fracassos da modernidade. Seu debate principal tem como alvo o modernismo e, portanto, do lado liberal, a crítica se dirige ao modelo administrativo (empresarial e estatal) trazido pelo fordismo e, do lado totalitário, ao modelo burocrático-administrativo trazido pela idéia de Plano e de necessidade histórica. A isto acrescente-se também a crítica ao marxismo, encarado como “metateoria” repressiva e mistificadora, particularmente no que se refere aos conceitos de alienação (pois este pressupõe a existência de um sujeito, de uma consciência centrada e significativa que se aliena) e de fetichismo da mercadoria (pois este pressupõe que as relações sociais entre pessoas tornaram-se relações sociais entre coisas).
Alguns exemplos podem ajudar-nos a acompanhar a ruptura pós-moderna em face do marxismo. Assim, a pergunta sobre o fetichismo poderia ser formulada da seguinte maneira: como passamos a depender objetivamente, em todos os detalhes de nossas vidas (sentimentos, trabalho, cotidiano, artes, ciência), de outras vidas inteiramente desconhecidas e opacas, totalmente escondidas e mediadas por relações impessoais? A resposta marxista foi a teoria do fetichismo da mercadoria para arrancar o véu da superfície social. Os pós-modernos consideram que não há máscara alguma e que a valorização da intimidade pode corrigir a opacidade trazida pela sociedade de massa. O marxismo procurava compreender como o dinheiro se torna mercadoria que representa todas as mercadorias, um meio que se torna o fim de todos os desejos. Os pós-modernos consideram o dinheiro um significante e não significado (força de trabalho, trabalho social), uma ficção e não uma função (representar), um signo e não um valor (ético, estético). O marxismo mostrava que a conversão do trabalhador em força de trabalho assalariada e alienada o transforma numa alteridade (o Outro do Capital, a mercadoria como seu outro). Os pós-modernos fazem da fragmentação social e da alteridade econômica entes dotados de peso ontológico: o Outro é um ser.
Ao vincularmos pós-modernismo e neoliberalismo quisemos sugerir que o primeiro não surge no vácuo e sem bases materiais. Nascido do rescaldo das lutas dos anos 60 — a contracultura em oposição à racionalidade tecnológica e burocrática e a todas as formas de autoritarismo; o cosmopolitismo em oposição aos particularismos localistas; a resistência à hegemonia da alta cultura modernista e ao hi-tech —, o pós-modernismo se constrói exprimindo a grande mudança do modo de produção capitalista que alguns designam com a expressão “acumulação flexível do capital”, em oposição ao keynesianismo e à organização industrial fordista.
Em linhas muito gerais, a economia neoliberal caracteriza-se pelo abandono de um princípio keynesiano (intervenção do Estado na economia e endividamento estatal para distribuição da renda e promoção do bem-estar social, diminuindo o excesso das desigualdades) e um princípio fordista (planejamento, funcionalidade, organização do trabalho industrial sob a forma do planejamento de longo prazo, centralização e verticalização das plantas industriais, grandes linhas de montagem concentradas em um único espaço, formação de grandes estoques, idéia de racionalidade e durabilidade dos produtos, política salarial de promoção do trabalhador e ampliação de sua capacidade de consumo). Privatização, de um lado, desregulação do mercado, de outro, rompem com o princípio keynesiano. Desintegração vertical da produção, tecnologias eletrônicas, diminuição dos estoques, velocidade na qualificação, desqualificação e requalificação da mão-de-obra, aceleração do turnover da produção, do comércio e do consumo pelo desenvolvimento das técnicas de informação e distribuição, proliferação do setor de serviços (ênfase em pequenas empresas de subcontratos de serviços e com alta competitividade, crescimento da economia informal e paralela) e novos meios para prover serviços financeiros (a desregulação econômica, isto e, os grandes conglomerados financeiros, e novos instrumentos para o mercado financeiro, formam um único mercado mundial com poder de coordenação financeira) rompem com o princípio fordista. Cresceu o consumo de serviços e diminuiu o consumo de bens, e no consumo surgiu inconteste o mercado da moda, veloz, efêmero e descartável.
As mudanças do modo de pensar, sentir e agir formam um mundo pós-moderno onde prevalece, no dizer de Harvey, a “compressão espaço-temporal” (o conto, em vez do romance; o paper, em vez do livro; o videoclip, em vez do documentário; o localismo, em vez do cosmopolitismo; mercado da “tradição” e mercado da imagem). Para o que nos interessa aqui, o fenômeno mais importante é a passagem do espaço público à condição de marketing, merchandising e midiazação e a do espaço privado à condição de privacidade intimista, mas sobretudo a perda de fronteiras entre ambos, abrindo comportas para formas meditas do despotismo.
A peculiaridade pós-moderna — o gosto pelas imagens — se estabelece com a transformação das imagens em mercadorias, isto é, em lugar de colocar um produto no mercado, coloca-se uma imagem com a finalidade de manipular o gosto e a opinião. A publicidade não opera para informar e promover um produto, mas para criar desejos sem qualquer relação imediata com o produto (a imagem vende sexo, dinheiro e poder). A própria imagem precisa ser vendida, donde a competição enlouquecida das agências de publicidade que sabem que uma imagem é efêmera e que seu poder de manipulação é muito limitado no tempo, sendo imprescindível seu descarte e troca veloz. Na política, as imagens tornam-se muito sofisticadas e complexas porque precisam garantir, simultaneamente, estabilidade e permanência ao poder e sua adaptabilidade, flexibilidade e dinamismo para responder às conjunturas. A competição pública não se faz entre partidos, ideologias ou candidatos, mas entre imagens que disputam valores como “credibilidade”, “confiabilidade”, “respeitabilidade”,’ ‘inovação’ ‘,“prestígio”. Essas são as novas virtudes do novo bom governante. As eleições presidenciais de 1989, no Brasil, são o melhor exemplo do pós-modernismo no espaço público.
Ora, havíamos visto que a marca do despotismo encontrava-se na moralização do poder (as virtudes da corporificação e personalização do poder identificado com a figura do governante). É exatamente isso que procura o neoliberalismo pós-moderno: à veloz dispersão e fragmentação da esfera privada do mercado e à veloz desintegração do espaço público sob os imperativos da dispersão econômica, a política procura contrapor o centro identificador perdido e o localiza na pessoa-em-imagem do governante — no ser-em-representação, de que falava Pascal. Parte integrante do universo da mídia — imagem e moda, publicidade e manipulação do desejo —, a política se privatiza: a vida privada do governante ocupa toda a cena pública e, como o antigo imperador romano, seus gostos e preferências à mesa, na cama, na praça desportiva, em sua biblioteca, com seus animais de estimação e sua família são cotidianamente exibidos para o julgamento fascinado dos cidadãos. Qual imenso Narciso, como o tirano de La Boétie, o governante identifica-se com o poder, torna-se centro do saber, da lei e da direção social. Por isso a privatização do público se realiza pela perda de sentido e de poder de todas as instituições políticas capazes de servir como mediação entre o poder executivo e a sociedade. Privatização significa desinstitucionalização do espaço público e corresponde ao fortalecimento dos centros privados onde se dá a decisão econômica e ao enfraquecimento dos Estados nacionais.
No Brasil, o pós-modernismo cai como luva. De fato, a política neoliberal é conservadora, contrária aos direitos sociais e civis, contrária aos movimentos sociais e à divisão dos poderes. Se cai como luva num país como o nosso é porque a sociedade brasileira sequer chegou aos princípios liberais da igualdade formal e das liberdades e muito menos aos ideais socialistas da igualdade econômica e social e da liberdade política e de pensamento. Sociedade sem cidadania, profundamente autoritária, onde as relações sociais são marcadas com o selo da hierarquia entre superiores e inferiores, mandantes e mandados, onde prevalecem relações de favor e de clientela, onde inexiste a prática política da representação e da participação, a sociedade brasileira sempre teve fascínio pelo populismo como forma da esfera pública da política. O populismo, como se sabe, opera pela relação direta e imediata entre o governante e o povo”, à distância das mediações institucionais, alimentando o imaginário messiânico da salvação e o imaginário feudal da proteção. Assim, no ponto mais alto da contemporaneidade — o pós-modernismo —‘ encontramos uma formulação do público que veste perfeitamente a mais velha e anacrônica tradição política brasileira. O chefe populista tem uma relação despótica com a sociedade (pai, “coronel”” doutor” competente, messias dos pobres e descamisados) e pode, agora, ir recoberto com os paramentos do que há de mais moderno — aliás, pós-moderno — quando fabrica sua imagem e seu poder com os recursos da publicidade pós-moderna.
Que se passa na esfera privada? Os movimentos sociais tornam-se cada vez mais “específicos” (cada vez mais “diferentes”) e cada vez mais localistas. A intimidade torna-se um valor como resposta ao anonimato de massa e à insegurança gerada pela flutuação incessante do sistema ocupacional e do mercado de mão-de-obra. A busca da satisfação imediata dos desejos, num universo de compressão temporal e de velocidade do mercado da moda, fortalece a competição e o narcisismo. Insegurança quanto ao presente e ao futuro, competição, infantilização pela propaganda, perda dos referenciais sócio-econômicos que ofereciam identidade de classe ou de grupo, tudo contribui para a desaparição (lá onde havia) e para a não-aparição (lá onde não havia) de formas de sociabilidade mais amplas e generosas. Os movimentos sociais duram o tempo em que dura a demanda que, uma vez satisfeita, dispersa os que estavam unidos numa ação.
Quatro traços parecem marcar a esfera privada pós-moderna: a insegurança, que leva a aplicar recursos no mercado de futuros e de seguros; a dispersão, que leva a procurar uma autoridade política forte, com perfil despótico; o medo, que leva ao reforço de antigas instituições, sobretudo a família e a pequena comunidade da “minha rua” e o retorno a formas místicas e autoritárias de religiosidade; o sentimento do efêmero e a destruição da memória objetiva dos espaços, que levam ao reforço dos suportes subjetivos da memória (diários, fotografias, objetos), fazendo, como disse um autor, com que a casa se torne uma espécie de pequeno museu privado. No caso do Brasil, além dos traços anteriores, reforça-se a ética da desigualdade: são meus iguais, minha família, meus parentes e meu pequeno círculo de amigos, enquanto os demais são o “outro” ameaçador OU estranho. Se a “lei de Gerson” pode funcionar é porque, malgrado os pruridos morais de seus praticantes, ela exprime a solidão e o medo diante de uma sociedade sentida como perigosa e hostil.
É interessante observar a maneira como a pós-modernidade acaba determinando o próprio esforço e pensamento dos que ainda desejam ser modernistas e modernos.
Arendt (do lado liberal), Adorno e Horkheimer (do lado marxista), por vias diferentes, haviam concluído que a utopia do espaço público, desejado pela emancipação marxista, seria impossível em decorrência do princípio mesmo que orientava a sociedade fritura: o Trabalho Social. Seja, como dizia Arendt, porque o marxismo não teria como acender ao espaço público da práxis (a política) por ficar preso ao labor (esforço biológico de sobrevivência e reprodução da espécie) e ao trabalho (esforço heterônomo da técnica); seja, como diziam Adorno e Horkheimer, porque o marxismo (entenda-se leninismo taylorista e stalinismo stakanovista) prendeu-se a uma categoria inseparável da razão instrumental, da dialética do iluminismo e da sociedade planejada e administrada. Ora, quando lemos os textos mais recentes de economistas de origem marxista, percebemos dois vetores principais de análise para livrar-se do Trabalho como categoria central: contra a razão instrumental-administrativa, encarnada na idéia de Plano, erguem a idéia de um mercado socialista (socializado) como esfera pública (e não privada; como no mercado capitalista; nem estatal, como no totalitarismo); contra a idéia do trabalho como centro regulador da nova sociedade, oferece-se a idéia de direitos do consumidor, isto é, o centro não é a produção (como queria Marx), mas o consumo (como quer o neoliberalismo). Assim, o momento da escolha e da troca seria o regenerador do socialismo no plano econômico.
Quando examinamos os textos mais recentes de Habermas, crítico ferrenho do pós-modernismo como irracionalidade e defensor da continuidade do “projeto da modernidade”, observamos que, ao contrário do que aparecia em suas antigas obras, agora também foi abandonado o “paradigma” do trabalho pelo da linguagem, em cujo centro encontra-se o ideal da comunicação ativa e veraz, utopia de um novo espaço público do qual a ética não estaria ausente, uma vez que a decisão de atividade e veracidade dos argumentos entre os interlocutores seria uma decisão ética anterior à entrada no espaço público.
Notamos, assim, que dois temas privilegiados pelo pós-modernismo — o consumo e os jogos de linguagem —, isto é, dois temas do campo da circulação — mercadorias e palavras — rondam os que ainda desejam manter o projeto modernista e acabam determinando a maneira mesma como se debatem numa problemática cujos termos, afinal, foram postos pelo pós-modernismo.
Do modo-de-produção a formas ético-políticas de interação social, tal poderia ser o resumo do percurso de uma marxista, seguidora de Habermas como Agnes Heller. Em The postmodern political condition, Heller procura um espaço público onde operam as virtudes cívicas e os princípios políticos da democracia. Corno ficar satisfeito numa sociedade de insatisfação? indaga ela (a própria pergunta é sugestiva, ao fazer da satisfação o motto democrático). A resposta é urna ética (de estilo kantiano) e uma política (de estilo socialista) que possam equilibrar a “lógica da demanda” (o querer de cada um) e a “lógica do necessário” (a busca da autodeterminação, da autonomia e da liberdade). O equilíbrio, que somente a democracia será capaz de trazer, dependeria da exposição em público, da discussão em público, da deliberação em público e do reconhecimento público dos conflitos entre as duas lógicas. A isegoria seria restaurada e não estaria descartada a utopia da bela cidade ética. No caso de Heller, como dos marxistas que buscam um mercado socialista baseado no direito do consumidor, a preocupação está voltada para os indivíduos (não para classes sociais) e seus desejos, carências e direitos. Admite-se o conflito, mas aposta-se na chegada progressiva ao consenso, tema preferencial da política neoliberal.
Lógica da circulação em lugar da produção; lógica da comunicação, em lugar do trabalho; lógica da satisfação-insatisfeita dos indivíduos, em lugar da luta de classes — eis alguns exemplos de como a ideologia pós-moderna passou a determinar o pensamento dos “últimos modernos”.
Estamos confrontados com o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado que, do ponto de vista da economia, tornou-se espaço mundial (os grandes conglomerados transnacionais, os centros planetários de decisão financeira, a compressão temporal, trazida pelos satélites, e a geopolítica renascida com a compressão do espaço).
Quando se inicia o filme O declínio do Império americano, uma das personagens (a historiadora que escrevera um livro com este mesmo título), assumindo um tom que lembra Tácito, HegeL e Gibbons, afirma que dispomos sempre de um sinal para avaliar a queda ou o começo do fim de um poder político enquanto político. Este sinal, diz ela, foi percebido no crepúsculo da democracia grega, no final do Império romano e na longa agonia do Antigo Regime. Pode ser percebido agora, no “declínio do Império americano”: trata-se do momento em que a sociedade e seus pensadores voltam-se primordialmente para as relações pessoais, para os indivíduos e suas paixões, carências, demandas e interesses, para a vida privada, desinteressando-se das preocupações cívicas e políticas. Família, religião da salvação, amor, juventude, felicidade, moral tornam-se assuntos preferidos. Olha-se com profunda desconfiança para a política, vista como ilusão, mistificação e corruptora dos costumes; critica-se a sociedade por seu egoísmo, por ser repressora dos sentimentos e da espontaneidade, dotada de mecanismos invisíveis para a obtenção da obediência; fala-se na cisão benfazeja entre o indivíduo e a comunidade mais ampla, defende-se o direito à vida feliz, em geral identificada com o “retorno à Natureza”.
Microfísica dos poderes e dos discursos, “ecologia mística”, obsessão narcísica pelo corpo sadio, belo e jovem, elogio da família e das religiões de possessão extática: eis alguns dos temas preferenciais do nosso tempo. Mas, teremos de escolher entre a idealização da bela cidade ética perdida e a volatilização do espaço público sob o manto protetor da intimidade... exibicionista? Que sentido teria a palavra “declínio”? Parece-nos que o risco que corremos neste final de milênio perplexo encontra-se noutro lugar: no rearranjo, em escala mundial, das forças conservadoras que poderão capturar “mal-estar na cultura” para convertê-lo em amortecedor benévolo do conformismo e da resignação sem esperança.

1. Essa “periodização” é bastante contestável e não pretendemos tomá-la como rigorosa e fundamentada. Está sendo proposta apenas para facilitar a análise. Assim, por exemplo, um autor como Perry Anderson considera as monarquias absolutas não como modernas e sim como última expressão do feudalismo. O historiador Amo Mayer julga que o Antigo Regime termina apenas com a guerra de 1914-1918. Um conservador como François Furet nega que tenha havido a Revolução francesa (senão como insurgência popular de superfície), pois a burguesia já criara a modernidade no interior do Antigo Regime. O debate é longo e sugerimos ao leitor a consulta de Perry Anderson, Linhagens do Estado absolutista (São Paulo, Brasiliense, 1985); Colin Mooers, The making o! bourgeois Europe (Londres, Verso, 1991); François Furet, Pensando a Revolução francesa (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989); Eric Hobshawm, Echoes o! lhe Marseillaíse (Londres, Verso, 1990); George Cominel, Rethinking the French Revolution (Londres, Verso, 1987); Olivier Betouné e Aglaia llartig, Penser l’ histoire de la Révolution (Paris, La Découverte, 1989); Amo Mayer, A força da tradição: persistência do Antigo Regime (São Paulo, Companhia das Letras, 1987). Também a data proposta para o modernismo não é tranqüila, uma vez que, como dissemos, há autores que não poderiam admitir 1848 como referência e deslocariam a data para a Primeira Guerra Mundial. Sobre o problema, sugerimos ao leitor que consulte, além de Marx evidentemente, Walter Benjamin, Illuminations (Nova York, 1969); T. Adorno e M. Horkheimer, Dialética do Esclarecimento (São Paulo, Brasiliense, 1986); Marshall Berman, Tudo o que é sólido desmancha no ar (São Paulo, Companhia das Letras, 1986). Finalmente, o pós-modernismo poderia ter sua data recuada para o final dos anos 60, em lugar de ser datado nos meados dos anos 70, uma vez que crítica dos “paradigmas”, da razão e do centro ordenador, do Estado como determinante do poder, assim como a defesa das dcscontinuidades, rupturas, diferenças e alteridades já aparecem nos anos 60. Sugerimos ao leitor a consulta de David Harvey, The condition of postmodernity (Cambridge, Basil Blackwell, 1989); J. Arac, Postmodernism and politics (Manchcster, 1986); J. Baudrillard, L ‘Amerique (Paris, 1986); W. Halal, The new capitalism (Nova York, 1986); F. Jameson, “Postmodernism or lhe cultural logic of late capitalism”, New Left Review 146 (1984); P. Burgcr, “O declínio da Era Moderna”, Novos Estudos Cebrap 14 (1986); F. Lyotard, O pós-moderno (Rio de Janeiro, José Olyrnpio, 1986); Vários Autores, Pós-modernidade (Campinas, Unicamp, 1987); A. HelIer, Tbe postmodern political condítion (Cambridge, Basil Blackwell, 1988.

2. Novamente é bom observar a fragilidade da tipificação” que estamos oferecendo. Bastaria a cronologia bruta para contestá-la empiricamente: Weber teria ficado fora do modernismo, assim como Freud, para mencionar apenas dois nomes entre muitos outros. A “classificação” apresentada visa apenas a sugerir qual o pensamento político que organiza para os demais a adesão, a critica ou a recusa, servindo de referencial predominante para as interpretações das práticas sociais, econômicas, políticas e culturais.


Chaui, M. In: Novaes, A. (org.). Ética. São Paulo, Companhia das Letras / SMC, 1992, (excertos, p. 382- 390).

quinta-feira, 17 de março de 2011

Entrevista com Maria da Conceição Tavares no Carta Maior

"Obama foi anulado pelo conservadorismo de bordel dos EUA"

Em entrevista exclusiva à Carta Maior, a economista Maria da Conceição Tavares fala sobre a visita de Obama ao Brasil, a situação dos Estados Unidos e da economia mundial. Para ela, a convalescença internacional será longa e dolorosa. A razão principal é o congelamento do impasse econômico norte-americano, cujo pós-crise continua tutelado pelos interesses prevalecentes da alta finança em intercurso funcional com o moralismo republicano. ‘É um conservadorismo de bordel’, diz. E acrescenta: "a sociedade norte-americana encontra-se congelada pelo bloco conservador, por cima e por baixo. Os republicanos mandam no Congresso; os bancos tem hegemonia econômica; a tecnocracia do Estado está acuada”.

Data: 17/03/2011

Quando estourou a crise de 2007/2008, ela desabafou ao Presidente Lula no seu linguajar espontâneo e desabrido: “Que merda, nasci numa crise, vou morrer em outra”. Perto de completar 81 anos – veio ao mundo numa aldeia portuguesa em 24 de abril de 1930 - Maria da Conceição Tavares, felizmente, errou. Continua bem viva, com a língua tão afiada quanto o seu raciocínio, ambos notáveis e notados dentro e fora da academia e esquerda brasileira. A crise perdura, mas o Brasil, ressalta com um sorriso maroto, ao contrário dos desastres anteriores nos anos 90, ‘saiu-se bem desta vez, graças às iniciativas do governo Lula’.

A convalescença internacional, porém, será longa, adverte. “E dolorosa”. A razão principal é o congelamento do impasse econômico norte-americano, cujo pós-crise continua tutelado pelos interesses prevalecentes da alta finança em intercurso funcional com o moralismo republicano. ‘É um conservadorismo de bordel’, dispara Conceição que não se deixa contagiar pelo entusiasmo da mídia nativa com a visita do Presidente Barack Obama, que chega o país neste final de semana.

Um esforço narrativo enorme tenta caracterizar essa viagem como um ponto de ruptura entre a ‘política externa de esquerda’ do Itamaraty – leia-se de Lula , Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães - e o suposto empenho da Presidenta Dilma em uma reaproximação ‘estratégica’ com o aliado do Norte. Conceição põe os pingos nos is. Obama, segundo ela, não consegue arrancar concessões do establishment americano nem para si, quanto mais para o Brasil. ‘Quase nada depende da vontade de Obama, ou dito melhor, a vontade de Obama quase não pesa nas questões cruciais. A sociedade norte-americana encontra-se congelada pelo bloco conservador, por cima e por baixo. Os republicanos mandam no Congresso; os bancos tem hegemonia econômica; a tecnocracia do Estado está acuada”. O entusiasmo inicial dos negros e dos jovens com o presidente, no entender da decana dos economistas brasileiros, não tem contrapartida nas instâncias onde se decide o poder americano. “O que esse Obama de carne e osso poderia oferecer ao Brasil se não consegue concessões nem para si próprio?”, questiona e responde em seguida: ‘Ele vem cuidar dos interesses americanos. Petróleo, certamente. No mais, fará gestos de cortesia que cabem a um visitante educado’.

O desafio maior que essa discípula de Celso Furtado enxerga é controlar “a nuvem atômica de dinheiro podre” que escapou com a desregulação neoliberal – “e agora apodrece tudo o que toca”. A economista não compartilha do otimismo de Paul Krugman que enxerga na catástrofe japonesa um ponto de fuga capaz, talvez, de exercer na etapa da reconstrução o mesmo efeito reordenador que a Segunda Guerra teve sobre o capitalismo colapsado dos anos 30. “O quadro é tão complicado que dá margem a isso: supor que uma nuvem de dinheiro atômico poderá corrigir o estrago causado por uma nuvem nuclear verdadeira. Respeito Krugman, mas é mais que isso: trata-se de devolver o dinheiro contagioso para dentro do reator, ou seja, regular a banca. Não há atalho salvador’.

Leia a seguir a entrevista exclusiva de Maria da Conceição Tavares à Carta Maior.

CM- Por que Obama se transformou num zumbi da esperança progressista norte-americana?

Conceição - Os EUA se tornaram um país politicamente complicado... o caso americano é pior que o nosso. Não adianta boas idéias. Obama até que as têm, algumas. Mas não tem o principal: não tem poder, o poder real; não tem bases sociais compatíveis com as suas idéias. A estrutura da sociedade americana hoje é muito, muito conservadora –a mais conservadora da sua história. E depois, Obama, convenhamos, não chega a ser um iluminado. Mas nem o Lula daria certo lá.

CM- Mas ele foi eleito a partir de uma mobilização real da sociedade....

Conceição - Exerce um presidencialismo muito vulnerável, descarnado de base efetiva. Obama foi eleito pela juventude e pelos negros. Na urna, cada cidadão é um voto. Mas a juventude e os negros não tem presença institucional, veja bem, institucional que digo é no desenho democrático de lá. Eles não tem assento em postos chaves onde se decide o poder americano. Na hora do vamos ver, a base de Obama não está localizada em lugar nenhum. Não está no Congresso, não tem o comando das finanças, enfim, grita, mas não decide.

CM - O deslocamento de fábricas para a China, a erosão da classe trabalhadora nos anos 80/90 inviabilizaram o surgimento de um novo Roosevelt nos EUA?

Conceição - Os EUA estão congelados por baixo. Há uma camada espessa de gelo que dissocia o poder do Presidente do poder real hoje exercido, em grande parte, pela finança. Os bancos continuam incontroláveis; o FED (o Banco Central americano) não manda, não controla. O essencial é que estamos diante de uma sociedade congelada pelo bloco conservador, por cima e por baixo. Os republicanos mandam no Congresso; os bancos tem hegemonia econômica; a tecnocracia do Estado está acuada...

CM- É uma decadência reversível?

Conceição – É forçoso lembrar, ainda que seja desagradável, que os EUA chegaram a isso guiados, uma boa parte do caminho, pelas mãos dos democratas de Obama. Foram os anos Clinton que consolidaram a desregulação dos mercados financeiros autorizando a farra que redundou em bolhas, crise e, por fim, na pasmaceira conservadora.

CM - Esse colapso foi pedagógico; o poder financeiro ficou nu, por que a reação tarda?

Conceição - A sociedade americana sofreu um golpe violento. No apogeu, vendia-se a ilusão de uma riqueza baseada no crédito e no endividamento descontrolados. Criou-se uma sensação de prosperidade sobre alicerces fundados em ‘papagaios’ e pirâmides especulativas. A reversão foi dramática do ponto de vista do imaginário social. Um despencar sem chão. A classe média teve massacrados seus sonhos do dia para noite. A resposta do desespero nunca é uma boa resposta. A resposta americana à crise não foi uma resposta progressista. Na verdade, está sendo de um conservadorismo apavorante. Forças e interesses poderosos alimentam essa regressividade. A tecnocracia do governo Obama teme tomar qualquer iniciativa que possa piorar o que já é muito ruim. Quanto vai durar essa agonia? Pode ser que a sociedade americana reaja daqui a alguns anos. Pode ser. Eles ainda são o país mais poderoso do mundo, diferente da Europa que perdeu tudo, dinheiro, poder, auto-estima... Mas vejo uma longa e penosa convalescença. Nesse vazio criado pelo dinheiro podre Obama flutua e viaja para o Brasil.

CM – Uma viagem cercada de efeitos especiais; a mídia quer demarcá-la como um divisor de águas de repactuação entre os dois países, depois do ‘estremecimento com Lula’. O que ela pode significar de fato para o futuro das relações bilaterais?

Conceição - Obama vem, sobretudo, tratar dos interesses norte-americanos. Petróleo, claramente, já que dependem de uma região rebelada, cada vez mais complexa e querem se livrar da dependência em relação ao óleo do Chávez. A política externa é um pouco o que sobrou para ele agir, ao menos simbolicamente.

CM – E o assento brasileiro no Conselho de Segurança?

Conceição - Obama poderá fazer uma cortesia de visitante, manifestar simpatia ao pleito brasileiro, mas, de novo, está acima do seu poder. Não depende dele. O Congresso republicano vetaria. Quase nada depende da vontade de Obama, ou dito melhor, a vontade de Obama quase não pesa nas questões cruciais.

CM - Lula também enfrentou essa resistência esfericamente blindada, mas ganhou espaço e poder...

Conceição - Obama não é Lula e não tem as bases sociais que permitiriam a Lula negociar uma pax acomodatícia para avançar em várias direções. A base equivalente na sociedade americana, os imigrantes, os pobres, os latinos, os negros, em sua maioria nem votam e acima de tudo estão desorganizados. Não há contraponto à altura do bloco conservador, ao contrário do caso brasileiro. O que esse Obama de carne e osso poderia oferecer ao Brasil se não consegue concessões nem para si próprio?

CM – A reconstrução japonesa, após a tragédia ainda inconclusa, poderia destravar a armadilha da liquidez que corrói a própria sociedade americana ? Sugar capitais promovendo um reordenamento capitalista, como especula Paul Krugman?

Conceição - A situação da economia mundial é tão complicada que dá margem a esse tipo de especulação. Como se uma nuvem atômica de dinheiro pudesse consertar uma nuvem atômica verdadeira. Não creio. Respeito o Krugman, mas não creio. O caminho é mais difícil. Trata-se de devolver a nuvem atômica de dinheiro para dentro do reator; é preciso regular o sistema, colocar freios na especulação, restringir o poder do dinheiro, da alta finança que hoje campeia hegemônica. É mais difícil do que um choque entre as duas nuvens. Ademais, o Japão eu conheço um pouco como funciona, sempre se reergueu com base em poupança própria; será assim também desta vez tão trágica. Os EUA por sua vez, ao contrário do que ocorreu na Segunda Guerra, quando eram os credores do mundo, hoje estão pendurados em papagaios com o resto do mundo –o Japão inclusive. O que eles poderiam fazer pela reconstrução se devem ao país devastado?

CM – Muitos economistas discordam que essa nuvem atômica de dinheiro seja responsável pela especulação, motivo de índices recordes de fome e de preços de alimentos em pleno século XXI. Qual a sua opinião?

Conceição - A economia mundial não está crescendo a ponto de justificar esses preços. Isso tem nome: o nome é especulação. Não se pode subestimar a capacidade da finança podre de engendra desordem. Não estamos falando de emissão primária de moeda por bancos centrais. Não é disso que se trata. É um avatar de moeda sem nenhum controle. Derivam de coisa nenhuma; derivativos de coisa nenhuma representam a morte da economia; uma nuvem nuclear de dinheiro contaminado e fora de controle da sociedade provoca tragédia onde toca. Isso descarnou Obama.

É o motor do conservadorismo americano atual. Semeou na America do Norte uma sociedade mais conservadora do que a própria Inglaterra, algo inimaginável para alguém da minha idade. É um conservadorismo de bordel, que não conserva coisa nenhuma. É isso a aliança entre o moralismo republicano e a farra da finança especulativa. Os EUA se tornaram um gigante de barro podre. De pé causam desastres; se tombar faz mais estrago ainda. Então a convalescença será longa, longa e longa.

CM – Esse horizonte ameaça o Brasil?

Conceição - Quando estourou a crise de 2007/2008, falei para o Lula: - Que merda, nasci numa crise mundial, vou morrer em outra... Felizmente, o Brasil, graças ao poder de iniciativa do governo saiu-se muito bem. Estou moderadamente otimista quanto ao futuro do país. Mais otimista hoje do que no começo do próprio governo Lula, que herdou condições extremas, ao contrário da Dilma. Se não houver um acidente de percurso na cena externa, podemos ter um bom ciclo adiante.

CM – A inflação é a pedra no meio do caminho da Dilma, como dizem os ortodoxos?

Conceição - Meu temor não é a inflação, é o câmbio. Aliás, eu não entendo porque o nosso Banco Central continua subindo os juros, ainda que agora acene com alguma moderação. Mas foram subindo logo de cara! Num mundo encharcado de liquidez por todos os lados, o Brasil saiu na frente do planeta... Subimos os juros antes dos ricos, eles sim, em algum momento talvez tenham que enfrentar esse dilema inflacionário. Mas nós? Por que continuam a falar em subir os juros se não temos inflação fora de controle e a prioridade número um é o câmbio? Não entendo...

CM - Seria o caso de baixar as taxas?

Conceição - Baixar agora já não é mais suficiente. Nosso problema cambial não se resolve mais só com inteligência monetária. Meu medo é que a situação favorável aqui dentro e a super oferta de liquidez externa leve a um novo ciclo de endividamento. Não endividamento do setor público, como nos anos 80. Mas do setor privado que busca lá fora os recursos fartos e baratos, aumentando sua exposição ao risco externo. E quando os EUA subirem as taxas de juros, como ficam os endividados aqui?

CM – Por que o governo hesita tanto em adotar algum controle cambial?

Conceição - Porque não é fácil. Você tem um tsunami de liquidez externa. Como impedir as empresas de pegarem dinheiro barato lá fora? Vai proibir? Isso acaba entrando por outros meios. Talvez tenhamos que implantar uma trava chilena. O ingresso de novos recursos fica vinculado a uma permanência mínima, que refreie a exposição e o endividamento. Mas isso não é matéria para discutir pelos jornais. É para ser feito. Decidir e fazer.

CM - A senhora tem conversado com a Presidenta Dilma, com Lula?

Conceição - O governo está começando; é preciso dar um tempo ao tempo. Falei com Lula recentemente quando veio ao Rio. Acho que o Instituto dele está no rumo certo. Deve se debruçar sobre dois eixos fundamentais da nossa construção: a questão da democracia e a questão das políticas públicas. Torço para que o braço das políticas públicas tenha sede no Rio. O PT local precisa desse empurrão. E fica mais perto para participar.

Manifesto

Estamos iniciando um espaço de ampla discussão política sobre o papel da Universidade na sociedade e suas implicações para o Campus Sorocaba da UFSCar.

Os princípios que direcionaram nossas discussões serão:

Gestão Participativa e Democrática.

Universidade vinculada às demandas locais e regionais.

Campus Universitário Democrático, Multicultural, Plural e Tolerante.

Comprometimento com um Ensino Público de Qualidade.

Este BLOG está sendo construído para TODOS e contamos com a colaboração de TODOS, para divulgar e enviar suas sugestões, textos, links para o e-mail: paratodos.ufscar@gmail.com