segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A face autoritária do reitor da USP

Há algumas semanas atrás a ocupação da reitoria da USP tomou conta da grande parte dos noticiários e das redes sociais. Todo o barulho feito pela grande mídia tem como em outras oportunidades um discurso moralista sobre a legalização da maconha, ponto este que não está em discussão nas manifestações dos estudantes. Mesmo passado um pouco do barulho da grande mídia postaremos aqui um texto do Blog Coletivo Outras Palavras e um vídeo do Prof. Luiz Renato Martins. Tentando explicar as reais razões para a invasão dos estudantes.



Quando dirigia a Faculdade de Direito, João Grandino Rodas colocou a tropa de choque para desalojar manifestantes. Também já recebeu uma condecoração de oficiais da reserva do Exército, defensores da “Revolução de 64″

Por Ana Paula Salviatti

Ao resgatarmos a Memória da ditadura militar brasileira (1964-1985) encontramos no meio da história o nome do atual reitor da Universidade de São Paulo (USP), João Grandino Rodas. Entre 1995 e 2002, Rodas integrou a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos e esteve diretamente ligado à apuração da morte de alguns militantes de esquerda, dentre eles a estilista Zuzu Angel, caso em que os militares foram inocentados.

Enquanto diretor da Faculdade de Direito, Rodas foi primeiro administrador do Largo São Francisco a utilizar o aparato policial, ao requisitar, ainda na madrugada do dia 22 de agosto de 2007, a entrada de 120 homens da Polícia Militar, inclusive da tropa de choque, para a expulsão de manifestantes que participavam da Jornada em Defesa da Educação, na qual estavam presentes representantes da União Nacional dos Estudantes (UNE), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), de estudantes e membros de diretórios acadêmicos, os quais foram fichados e levados à delegacia, com um tratamento ofensivo em especial aos militantes dos movimentos populares.

Também foi Grandino Rodas que, ainda na gestão do governador José Serra (2006-2010), lavrou o documento que viabilizava a entrada da PM no campus da USP, em 2009. Durante sua administração na Faculdade de Direito, tentou sem sucesso a implementação de catracas para impedir o acesso de gente “estranha” ao prédio da instituição. Em seu último dia na direção da Faculdade de Direito, Rodas assinou a transferência do acervo da biblioteca para um prédio próximo à Faculdade, o qual não possuía perícia para tanto, apresentava problemas com a parte elétrica, hidráulica e inclusive com os elevadores. Tudo isso feito sem consultar sequer o corpo burocrático da Faculdade.

Ainda durante a gestão de José Serra, Grandino Rodas foi escolhido reitor da USP através de um decreto publicado no dia 13 de novembro de 2009. Seu nome era o segundo colocado numa lista de três indicações. Ou seja, Rodas não foi eleito pela comunidade acadêmica. A última vez que o governador do Estado impôs um reitor à Universidade — utilizando-se de um dispositivo legal criado no período militar e que está presente na legislação do Estado de São Paulo até hoje — foi durante a gestão do governador biônico Paulo Maluf, que indicou Miguel Reale para assumir a Reitoria da USP entre 1969 e 1973.

Na gestão de Rodas, estudantes têm sido processados administrativamente pela Universidade com base em dispositivos instituídos no período militar. Num dos processos, consta que uma aluna — cujo nome ficará em sigilo — agiu contra a moral e os bons costumes. Dispositivos como estes foram resgatados pela USP.

Em agosto de 2011, João Grandino Rodas assinou um convênio com a Polícia Militar para que esta pudesse entrar na Universidade. O reitor também recebeu o título de persona non grata por unanimidade na Faculdade de Direito, que apresenta uma série de denúncias contra a gestão do ex-diretor, acusando-o de improbidade administrativa, entre outros crimes. Recentemente, um novo ocorrido, a princípio um incidente, podia ser visto no campus ao ser lido na placa do monumento que está sendo construído na Praça do Relógio uma referencia à “Revolução de 64”, forma como os setores militares e demais apoiadores do golpe militar se remetem à ditadura vivida no Brasil.

Rodas também é atualmente investigado pelo Ministério Público de São Paulo por haver contratado sem concurso público dois funcionários ligados ao gabinete da Reitoria, sendo um deles filho da ex-reitora Suely Vilela. Contra Rodas também pesam denúncias de mau uso do dinheiro público. E, por último mas não menos importante, Grandino recebeu a medalha de Mérito Marechal Castello Branco, concedido pela Associação Campineira de Oficiais da Reserva do Exército (R/2) do NPOR do 28° BIB. O Marechal que dá nome à honraria, não custa lembrar, foi o primeiro presidente do Estado de Exceção vivido no país a partir de 1964.

Todas estas informações foram lembradas. No entanto, muitas outras lotam o Estado em todas as suas instituições, todos os dias, graças ao processo de abertura democrática do país, que não cumpriu o seu papel de resgatar a Memória e produzir uma História que reconfigurasse e restabelecesse os acontecimentos do regime, possibilitando a rearticulação das inúmeras ramificações do Estado, como foi feito no Chile, Argentina e mais recentemente Uruguai. A consciência dos cidadãos passa pelo tribunal da História que, ao abrir as cicatrizes não fechadas, limpa as feridas ao falar sobre as mesmas dando a cada um o que é lhe de direito.

As diversas vozes que exclamam a apatia nacional frente às condutas políticas sofrem deste mesmo mal ao não relembrarem que a história do país conduzida por “cima” não expulsou de si seus fósseis, e sim os transferiu de cargo, realocou-os em outras funções. Os resgates da imprensa são limitados às Diretas Já e ao Impeachment de 1992. Se a memória que a mídia repõe é a mesma que se debate no cotidiano, então nosso país sofre de perda de memória e , junto disso, de uma profunda inaptidão crítica de suas experiências, dando assim todo o respaldo ao comumente infundado senso comum.

Ao levantarmos o passado, constata-se que o anacronismo não está só nas inúmeras manifestações que acontecem no meio universitário, no caso a USP, mas em todas as vezes em que não são cobertas pelo noticiário as inúmeras reintegrações de posse feitas em comunidades carentes, nas manifestações que exigem a reforma agrária, nas reivindicações que exigem moradia aos sem-teto. O anacronismo está presente nas inúmeras invasões sem mandado judicial que ocorrem em todos os lugares onde a classe média não está, no uso comum de tortura pelas Polícias Militares em um Estado que se reivindica democrático, nos criminalizados por serem pobres e negros, naqueles que são executados como Auto de Resistência pelas Polícias Militares, e a lista segue. Vive-se a modernização do atraso nas mais diversas formas e matizes.

O tempo se abre novamente e aguarda o resgate da Memória e a reconstrução da História. O país tem uma dívida a ser paga com seu passado, e eis que, finalmente, a Comissão da Verdade vazia de sentido ao ser apresentada pelos inábeis veículos de informação ressurge agora preenchida e repleta de sentido. Afinal, a História dos vencedores nega o passado dos vencidos, assim como seu presente e, consequentemente, seu futuro.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Sobre educação, racismo e miséria

Análise de Douglas Belchior professor de História e membro do Conselho Geral da UNEafro-Brasil. Extraído do Brasil de Fato.


A presidenta Dilma Rousseff elegeu o combate à miséria como prioridade de seu governo. A relevância do tema provoca expectativa, em especial por conta da óbvia compreensão de que o combate à miséria requer algo mais do que políticas compensatórias superficiais, marca das ações governamentais nos últimos anos.

A superação da pobreza depende, fundamentalmente, do rompimento com os interesses do grande capital, no Brasil representado por uma elite racista e preconceituosa, formada por latifundiários e empresários do agronegócio, por banqueiros, especuladores financeiros, grandes meios de comunicação e empresas transnacionais de diversas áreas. Daí porque somente uma mudança estrutural nas relações políticas, sociais, raciais e econômicas seria capaz de combater efetivamente as desigualdades.

Pobreza e analfabetismo

Não podemos permitir ou compactuar com corte de recursos ou investimentos públicos nas áreas sociais. Ao contrário, devemos exigir uma ampliação desses investimentos, sempre considerando o peso da variável “raça” na estruturação das desigualdades sociais no Brasil. Para isso, basta analisar os dados do Censo 2010 do IBGE, segundo o qual aproximadamente 16,2 milhões de brasileiros vivem em condições de extrema pobreza. Desses, mais de 70% são negras e negros.

Já a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD) divulgada no final de 2010 apontou que o Brasil possui 14 milhões de analfabetos. E mais uma vez, percebe-se a população negra entre os mais preteridos no acesso ao direito à educação.

Aqueles que conseguem superar o analfabetismo encontram inúmeros desafios para completar o ensino médio, ter acesso a cursos técnicos e, principalmente, às universidades. Mesmo com o ProUni e o Enem enquanto via de acesso, as camadas mais empobrecidas têm ficado às margens das oportunidades visto o déficit na preparação prévia adequada e a própria limitação dos programas. São os cursinhos comunitários em todo Brasil que ocupam as lacunas deixadas pelo abandono do Estado. No caso da UNEafro-Brasil, mais de 2 mil jovens oriundos de escolas públicas se organizam em 42 núcleos, aliando estudo e luta em favor da educação pública. Será possível uma política efetiva de combate à miséria sem que haja ações dirigidas à população negra?

Lei 10.639/03 e o PNE

O racismo é constitutivo do capitalismo brasileiro. É uma ideologia de dominação sem a qual a elite brasileira não se manteria. Esse quadro explica, em parte, o fato de a Lei 10639/03 (alterada pela lei 11645/08), apesar de sua histórica e festejada aprovação, não ter saído do papel. Afinal, sua intenção é justamente contribuir para a superação dos preconceitos e atitudes discriminatórias por meio de práticas pedagógicas que incluam o estudo da influência africana e indígena na cultura nacional.

É necessário trabalhar para que o Plano Nacional de Educação (PNE), que volta a ser debatido, contemple a necessidade de radicalizar na efetivação das leis 10639/03 e 11645/08. E mais que isso. Em tempos de reivindicação pelo aumento dos investimentos em educação para a ordem de 10% do PIB, a UNEafro-Brasil propõe uma bandeira paralela tão importante quanto: a obrigatoriedade da destinação de, no mínimo, 10% dos recursos da educação de municípios, estados e federação para a aplicação das Leis 10639/03 e 11645/08. É preciso também regulamentar punições severas aos gestores públicos que as descumprirem.

A educação, num sentido ampliado, é tudo o que rodeia e forma o indivíduo, seja na escola formal, no ambiente familiar, nos diversos espaços de sociabilidade. E hoje, mais que nunca, também através dos meios de comunicação, em especial a televisão, a produção cultural (sobretudo na música) e as redes sociais da internet. Essa realidade nos coloca o desafio de pensar numa radical reformulação da educação brasileira, não apenas no que diz respeito aos recursos, mas ao modelo educacional, aos valores e aos métodos.

No Brasil, os afro-brasileiros representam 51% da população (IPEA). Diante dessa realidade, é sempre bom lembrar as palavras do mestre Kabengele Munanga: “Para qualquer pessoa se afirmar como ser humano ela tem de conhecer um pouco da sua identidade, das suas origens, da sua história”.

10% do PIB para educação

Não é possível imaginar um desenvolvimento sustentável e socialmente justo em uma sociedade que não prioriza a educação, não valoriza professores e não democratiza o acesso. Sobretudo, é necessário dar uma basta ao modelo neoliberal de educação que, infelizmente caminha a passos largos em nosso país. Exigimos 10% do PIB para o investimento em uma educação de qualidade, gratuita, popular, laica, antirracista, antimachista e antihomofóbica.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O perfeito imbecil politicamente incorreto


Reproduzo abaixo artigo da Jornalista Cynara Menezes da Revista Carta Capital (clique aqui para ver o original). O interessante é que eu pensava que na Universidade estaríamos livre deste tipo, ou que pelo menos eles seriam minoria...

O perfeito imbecil politicamente incorreto


Em 1996, três jornalistas –entre eles o filho do Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa, Álvaro –lançaram com estardalhaço o “Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano”. Com suas críticas às idéias de esquerda, o livro se tornaria uma espécie de bíblia do pensamento conservador no continente. Vivia-se o auge do deus mercado e a obra tinha como alvo o pensamento de esquerda, o protecionismo econômico e a crença no Estado como agente da justiça social. Quinze anos e duas crises econômicas mundiais depois, vemos quem de fato era o perfeito idiota.

Mas, quem diria, apesar de derrotado pela história, o Manual continua sendo não só a única referência intelectual do conservadorismo latino-americano como gerou filhos. No Brasil, é aquele sujeito que se sente no direito de ir contra as idéias mais progressistas e civilizadas possíveis em nome de uma pretensa independência de opinião que, no fundo, disfarça sua real ideologia e as lacunas em sua formação. Como de fato a obra de Álvaro e companhia marcou época, até como homenagem vamos chamá-los de “perfeitos imbecis politicamente incorretos”. Eles se dividem em três grupos

Em 1996, três jornalistas –entre eles o filho do Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa, Álvaro –lançaram com estardalhaço o “Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano”. Com suas críticas às idéias de esquerda, o livro se tornaria uma espécie de bíblia do pensamento conservador no continente. Vivia-se o auge do deus mercado e a obra tinha como alvo o pensamento de esquerda, o protecionismo econômico e a crença no Estado como agente da justiça social. Quinze anos e duas crises econômicas mundiais depois, vemos quem de fato era o perfeito idiota.

1. o “pensador” imbecil politicamente incorreto: ataca líderes LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trânsgeneros) e defende homofóbicos sob o pretexto de salvaguardar a liberdade de expressão. Ataca a política de cotas baseado na idéia que propaga de que não existe racismo no Brasil. Além disso, ações afirmativas seriam “privilégios” que não condizem com uma sociedade em que há “oportunidades iguais para todos”. Defende as posições da Igreja Católica contra a legalização do aborto e ignora as denúncias de pedofilia entre o clero. Adora chamar socialistas de “anacrônicos” e os guerrilheiros que lutaram contra a ditadura de “terroristas”, mas apoia golpes de Estado “constitucionais”. Um torturado? “Apenas um idiota que se deixou apanhar.” Foge do debate de idéias como o diabo da cruz, optando por ridicularizar os adversários com apelidos tolos. Seu mote favorito é o combate à corrupção, mas os corruptos sempre estão do lado oposto ao seu. Prega o voto nulo para ocultar seu direitismo atávico. Em vez de se ocupar em escrever livros elogiando os próprios ídolos, prefere a fórmula dos guias que detonam os ídolos alheios –os de esquerda, claro. Sua principal característica é confundir inteligência com escrever e falar corretamente o português.
2. o comediante imbecil politicamente incorreto: sua visão de humor é a do bullying. Para ele não existe o humor físico de um Charles Chaplin ou Buster Keaton, ou o humor nonsense do Monty Python: o único humor possível é o que ri do próximo. Por “próximo”, leia-se pobres, negros, feios, gays, desdentados, gordos, deficientes mentais, tudo em nome da “liberdade de fazer rir.” Prega que não há limites para o humor, mas é uma falácia. O limite para este tipo de comediante é o bolso: só é admoestado pelos empregadores quando incomoda quem tem dinheiro e pode processá-los. Não é à toa que seus personagens sempre estão no ônibus ou no metrô, nunca num 4X4. Ri do office-boy e da doméstica, jamais do patrão. Iguala a classe política por baixo e não tem nenhum respeito pelas instituições: o Congresso? “Melhor seria atear fogo”. Diz-se defensor da democracia, mas adora repetir a “piada” de que sente saudades da ditadura. Sua principal característica é não ser engraçado.
3. o cidadão imbecil politicamente incorreto: não se sabe se é a causa ou o resultados dos dois anteriores, mas é, sem dúvida, o que dá mais tristeza entre os três. Sua visão de mundo pode ser resumida na frase “primeiro eu”. Não lhe importa a desigualdade social desde que ele esteja bem. O pobre para o cidadão imbecil é, antes de tudo, um incompetente. Portanto, que mal haveria em rir dele? Com a mulher e o negro é a mesma coisa: quem ganha menos é porque não fez por merecer. Gordos e feios, então, era melhor que nem existissem. Hahaha. Considera normal contar piadas racistas, principalmente diante de “amigos” negros, e fazer gozação com os subordinados, porque, afinal, é tudo brincadeira. É radicalmente contra o bolsa-família porque estimula uma “preguiça” que, segundo ele, todo pobre (sobretudo se for nordestino) possui correndo em seu sangue. Também é contrário a qualquer tipo de ação afirmativa: se a pessoa não conseguiu chegar lá, problema dela, não é ele que tem de “pagar o prejuízo”. Sua principal característica é não possuir ideias além das que propagam os “pensadores” e os comediantes imbecis politicamente incorretos.

domingo, 16 de outubro de 2011

Enem: educação para quê e para quem

Matéria de Raquel Júnia produzida para Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), publicada no site da revista Caros Amigos (16/09/2011).


MEC afirma que média geral dos alunos no Enem melhorou. Professores e pesquisadores discutem o que deve ser a qualidade buscada na escola pública.


A educação de qualidade é uma bandeira que mesmo pessoas que não fazem parte de nenhum movimento organizado levantam. Nesta semana, foram divulgados os resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e, no ranking de desempenho das escolas feito pela mídia, nos primeiros lugares estão instituições particulares e, nos últimos, públicas. Pesquisadores entrevistados alertam sobre os riscos dessa comparação e discutem: afinal, o que é uma formação de qualidade no ensino médio?

Em coletiva de imprensa logo após a divulgação dos resultados do Enem, o ministro da Educação, Fernando Haddad, afirmou que houve um aumento de dez pontos na média geral dos estudantes do Enem, o que para o ministro, é um indicativo de melhora.

Apesar disso, em todos os noticiários foi manchete o fraco desempenho das escolas públicas em comparação às privadas, apesar de o MEC afirmar que o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) não concluiu os estudos que permitirão avaliar se a desigualdade entre as públicas e particulares diminuiu.

O professor do Cefet-Rio e ex diretor de concepções e orientações curriculares para a educação básica do MEC, Carlos Artexes, avalia que é um equívoco comparar o desempenho das instituições. "A avaliação dos resultados de um exame sem considerar outras variáveis é um equívoco pedagógico. Não estamos avaliando as condições da própria escola, a melhora que essas escolas tiveram, nem o perfil dos estudantes que as escolas atendem", alerta.

Para Artexes, é preciso levar em consideração, por exemplo, que a grande maioria dos estudantes de ensino médio estudam em instituições públicas. "Das mil escolas com piores resultados, 30% são particulares e 70% são públicas. Nós sabemos que no Brasil temos mais de 85% das matrículas nas escolas públicas. É inegável que existe um conjunto de escolas que obtiveram bom desempenho, por várias razões, inclusive históricas. Seria um equívoco dizer que isso não é importante, porque essa é uma das funções centrais da escola, mas não é a única variável que pode ser considerada", completa.

O professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e do Programa de Pós-graduação daEscola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Gaudêncio Frigotto, afirma que um elemento importante na discussão é considerar as diferentes condições de investimento nas escolas particulares e nas públicas.

"Isso não tem a ver com a inteligência das crianças, mas com as condições materiais objetivas, de tempo na escola, de acompanhamento da família, de tempo do professor. Outra questão é que as escolas particulares trabalham no sentido de ter notas altas porque elas fazem disso um marketing", analisa.

No Enem de 2010, cujos resultados foram divulgados agora, o MEC adotou uma metodologia diferente para considerar o desempenho das escolas. As instituições foram separadas de acordo com o número de alunos que participaram do Exame.

Assim, foram divulgados quatro grupos distintos de resultados - o das escolas que tiveram participação de mais de 75% dos estudantes, das escolas com participação entre 50% e 75%, um terceiro grupo com participação de 25% a 50%, e o último com instituições nas quais houve menos de 25% de taxa de participação. Frigotto considera positiva essa iniciativa do MEC para tentar impedir o marketing das escolas particulares com os resultados obtidos. "O MEC tenta com isso evitar esse tipo de manipulação por parte das escolas, porque algumas instituições incentivam apenas os melhores alunos a fazerem o Enem", afirma.

Artexes concorda: "Isso é um avanço, porque assim se faz o ranqueamento, sobretudo, das escolas que participam com mais de 75% de seus estudantes".

O professor pondera, entretanto, que a medida é insuficiente devido ao número crescente de estudantes que têm feito o Enem. "A tendência é ampliar esse número. Hoje, de um milhão e 800 mil alunos que concluem o ensino médio, mais de um milhão estão fazendo o exame. É importante mostrar também o perfil das escolas. O Inep tem inúmeros dados sobre as condições básicas das escolas e seria preciso dar visibilidade a algumas dessas características. É importante entender, por exemplo, que há escolas que fazem seleção para o acesso. Então, evidentemente, ela é diferente de outras. Há escolas em localizações territoriais diferenciadas. Então, quanto mais relacionarmos o resultado do exame com outros perfis das unidades escolares, mais avançaremos nas propostas de políticas públicas", sugere.

Condições materiais da qualidade

Em greve há mais de cem dias, os professores de Minas Gerais afirmam que o baixo desempenho das escolas públicas no Enem não é nenhuma surpresa. "Quando ficamos 100 dias em greve é sinal de que a escola pública não tem valor para ninguém.

Quando o governador oferece R$ 712 de salário - não é nem de piso salarial -, é sinal de que os professores não representam nada", desabafa a professora Monica de Souza, diretora estadual do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (SindUTE).

Apesar do apoio de diversos movimentos sociais e outras categorias de trabalhadores, o governo do estado de Minas cortou salários dos professores grevistas e demitiu contratados. As assembléias realizadas durante a greve chegam a reunir 9 mil professores e funcionários das escolas públicas estaduais.

No Rio de Janeiro, os trabalhadores da educação também recentemente estavam em greve e inclusive acamparam durante quase um mês na porta da Secretaria Estadual de Educação exigindo 26% de perdas salariais em caráter emergencial, já que, na realidade, a defasagem nos salários é de 80%.

Para o professor Adriano Santos, diretor da Secretaria de Assuntos Educacionais e de Formação do Sindicato dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro (Sepe) e diretor da coordenação nacional da Intersindical, também não é novidade o desempenho melhor das escolas particulares no Enem. "A lógica é que aqueles que têm melhores condições de aprendizado irão aprender mais", salienta.

Adriano ressalta que, sem prover as condições materiais e humanas, é impossível avançar na melhoria do ensino público. "Isso significa escolas com infraestrutura, professores e funcionários bem pagos e com planos de carreira, além de diversidade e profundidade curricular. Ainda não temos nem as condições básicas e por isso temos vários problemas na rede pública que vão desde falta de material, prédios ruins, até a qualidade no sentido mais amplo, que está relacionada com a concepção de educação que queremos", afirma.

O professor lembra que em 2011 já ocorreram 20 greves de profissionais da educação, algumas simultaneamente, em todo o país. "A pauta é praticamente a mesma. Aqui no Rio, dos 26% que exigimos de reposição de perda salarial, o estado concedeu apenas 5%", relata.

Gaudêncio Frigotto ressalta que o próprio ministro da educação, Fernando Haddad reconheceu durante a divulgação dos dados do Enem que o Brasil está longe de ter o investimento necessário em educação. O professor destaca uma pesquisa divulgada recentemente pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que situa o Brasil no contexto da educação mundial como um país que tem poucos jovens na universidade.

"Há um dado nessa pesquisa que mostra a diferença de materialidade que tem um aluno de escola privada, especialmente de classe média, e um aluno de escola pública. O Brasil gasta em torno de R$ 3 mil por aluno ao ano na rede pública. O padrão de gasto dos países da OCDE é de R$ 13 mil. Portanto, estamos quatro vezes abaixo. Isso revela que de fato nenhum professor ou diretor faz milagre com escolas tão mal estruturadas", diz.

O MEC afirma que o investimento na educação tem crescido. De acordo com o ministério, em 2000, o gasto em educação por aluno a cada ano no ensino médio, era de R$ 770. Em 2009, esse valor subiu para R$ 2.373.

Frigotto destaca, entretanto, o quanto esses valores ainda estão muito distantes do ideal. Ele compara: "Nas escolas da rede privada, sobretudo aquelas que aparecem nos primeiros lugares do Enem, o custo direto por aluno é de R$ 8 mil a R$ 10 mil reais ao ano. Basta somar as mensalidades pagas", reforça.

Para Artexes, de fato o custo por aluno ao ano no Brasil é um dos menores do mundo, particularmente no ensino médio. "Precisamos valorizar esse crescimento que houve. Mas ele não é suficiente, não podemos ficar satisfeitos. Comparado com países até vizinhos nossos, que têm um investimento médio no ensino médio em torno de R$ 6 mil, o Brasil está distante de uma média razoável, e por isso que é importante a luta pela ampliação dos recursos para a educação", diz.

O professor completa que as iniciativas de descentralização dos recursos para a educação ajudaram no crescimento obtido. "O Brasil tem uma estrutura tão burocrática e uma centralização de recursos tão significativa, que comemoramos quando criamos mecanismos de fazer com que esses recursos sejam aplicados diretamente na educação e nos lugares onde devem chegar, seja na unidade escolar, seja no pagamento de salário dos professores. O Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) ajudou nisso, assim como o repasse voluntário, e as iniciativas de cada vez mais exigir que se cumpra a legislação no que diz respeito ao investimento dos estados e municípios. Quanto mais monitoramos, mais os recursos vão sendo destinados e o investimento no aluno vai aumentando", observa.

10% do PIB para a educação

A campanha ‘PNE pra Valer' , organizada por vários movimentos sociais, quer que no novo Plano Nacional de Educação (PNE) fique garantida a destinação de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para a educação. De acordo com o MEC, o Brasil investe hoje cerca de 5,3% do PIB.

O ministro da Educação já deu declarações sinalizando a posição do governo de investir no mínimo 7% do PIB, entretanto, os movimentos argumentam que ainda é muito pouco.

Frigotto concorda. "É unânime do ponto de vista das organizações científicas, culturais, sindicatos e até já é uma tendência dentro do próprio Congresso que 7% é absolutamente insuficiente, significa manter as coisas como estão. Nós continuaremos tendo escolas sem professores nas condições ideais, porque eles vão trabalhar em três, quatro escolas. O PNE postula que o professor trabalhe em uma escola apenas, com metade do tempo em sala de aula e metade tendo formação e apoiando o aluno. E, para isso, o piso salarial tem que subir no mínimo até a mesma base que se paga aos profissionais liberais, administradores, engenheiros, advogados, algo em torno de R$ 3 mil", explica. Segundo o professor, com o aumento de 7% só seria possível pagar o piso atual aos professores.

Os sindicatos dos professores e trabalhadores da educação de Minas Gerais (SindUTE) e do Rio de Janeiro (Sepe), além de vários outros sindicatos do país, também estão na campanha pelos 10% do PIB. "Esses 10% do PIB garantem o que queremos: respeito às condições de trabalho dentro da escola, salário decente, inclusive para no futuro termos professores. Além disso, que de fato tenhamos condições para atendermos à multiplicidade e pluralidade de alunos que temos na escola hoje. Isso seria um salto de qualidade", afirma a diretora do Sind UTE, Mônica de Souza.

Carlos Artexes concorda com a campanha. Entretanto, para ele, garantir 7% do PIB para a educação é uma meta realista. "Sabemos que quando falamos em 7% é uma meta realista, mas lutar por 10% também é uma meta extremamente bem posicionada politicamente. Seria ingênuo acharmos que poderemos chegar a 10% do PIB na correlação de forças que está posta. Mas passarmos de cerca de 5% para 7% é um crescimento extraordinário, embora não suficiente para a tarefa e a dívida que nós temos. Lutar pelos 10%, pode nos ajudar a garantir 7% ou um pouco mais", observa. Artexes reforça que, além de aumentar os recursos, também é preciso garantir formas de corrigir outros problemas, como o não cumprimento da legislação por parte dos municípios e estados.

Concepção de educação

Além das condições materiais, discutir qualidade significa também debater a concepção da educação. Esta é a opinião de todos os entrevistados desta reportagem. "A maioria da classe trabalhadora se forma nas escolas públicas, então, precisamos saber que tipo de educação interessa para nós enquanto classe. Precisamos discutir se o que se pretende da educação é que ela seja apenas uma reprodutora dos mecanismos de opressão, exploração, preconceito e hierarquização da sociedade, ou uma educação que quer a libertação e a construção do projeto de uma nova sociedade", reflete o diretor do Sepe, Adriano Santos.

Para Artexes, além da referência material, a definição de qualidade na educação tem pelo menos mais outras três dimensões. Todas elas, segundo o professor, se articulam.

"Há uma dimensão organizativa. As escolas podem ter a mesma base material, mas um processo de organização e procedimentos que favoreçam o desempenho. Outra dimensão está nas relações. Quando se estabelece uma relação mais democrática, um processo que respeita o estudante e cria diálogos entre os professores, direção e estudantes, alcança-se um nível de qualidade. E a dimensão mais ampla está na identidade da escola, no projeto pedagógico com seus valores. Pode haver escolas com excelente desempenho no Enem e isso tem que ser valorizado, mas não é tudo. Muitas sociedades têm altos níveis de educação, mas não são capazes de estabelecer valores humanos dentro do processo social. Isso também é educação e também é tarefa da escola compartilhar esse processo formativo dos valores humanos, daquilo que concebemos como avanço dos sujeitos, e seu desenvolvimento", detalha.

Gaudêncio Frigotto destaca que a qualidade é um conceito extremamente disputado ideologicamente, e que a iniciativa de ranquear as instituições está dentro de uma perspectiva de qualidade mercantil, de entender a educação como uma mercadoria.

"Para os filhos da classe trabalhadora, uma educação de qualidade é ter uma educação básica que lhes permita articular conhecimento, cultura, trabalho e vida. Portanto, o critério definidor da qualidade não pode ser o mercado de trabalho, ainda que seja importante esse jovem entender a base científica, tecnológica, política e cultural que rege o mundo da produção. É uma educação que está voltada ao sujeito educando, de forma que ele possa se apropriar dos conhecimentos da ciência humana e da natureza, para interpretar e analisar a realidade, para tornar-se não um sujeito alienado, manipulado, colonizado, mas um sujeito que analise, se posicione e tenha condições de interferir na realidade", define.

O professor analisa que a visão produtivista e mercantil de educação é, infelizmente, dominante hoje. "O indicador disso é que grande parte das escolas de ensino fundamental e médio são públicas, mas começam a ser administradas e dirigidas pelo setor privado. A tese dos empresários e da imprensa dominante é que as escolas só serão boas quando tiverem os critérios das escolas privadas. Hoje, no município do Rio, por exemplo, quem dirige o processo e a gestão pedagógica das escolas, é o Instituto Ayrton Senna", exemplifica.