A ética pública do liberalismo econômico
O ideário liberal apresenta ora posições mais conservadoras, ora menos conservadoras em relação à desigualdade social e de como lidar com ela. Como defensores mais eloqüentes do ideário moral capitalista, Hayek e Nozick propõem o Estado mínimo e defendem que apenas o
mercado efetivamente distribui, de forma justa, os bens produzidos pela co-operação social. Com isso, atacam a intervenção pública no mercado, alegando que os mecanismos políticos de redistribuição são injustificáveis do ponto vista ético. A ilegitimidade do Estado deve-se à idéia de que o poder público não seria isento, expressando um padrão ou utopia imposto por uma parte a outra da sociedade. Essa isenção ou falta de comprometimento ideológico e social com utopias ou ideários morais apresenta-se como o valor maior defendido pelo neoliberalismo. Nessa perspectiva liberal, somente o mercado deve ser decisivo na redistribuição dos bens sociais, pois o planejamento e medidas redistributivistas, por onerarem a propriedade privada, são vistos como ineficientes e totalitários. Já os pensadores liberais, que admitem a intervenção do Estado na economia no sentido de corrigir os efeitos “perversos” do mercado, tais como a concentração de renda e desemprego, são vistos como radicais em relação a certos valores básicos do capitalismo, na medida em que, de certo modo, tornam relativo o direito à propriedade. Contudo, esses autores apresentam-se também sempre comprometidos com a “estabilidade” do
sistema capitalista, e com o restabelecimento de uma justiça supostamente inerente ao mercado. As tendências do poder público nas sociedades capitalistas, no sentido de atuar conforme uma visão mais ou a menos conservadora da ética pública liberal são correlatas das estratégias políticas para a garantia da “ordem” social capitalista.
A concepção moral inerente à tradição do liberalismo econômico supõe que a distribuição mais justa de recursos e bens é aquela que resulta da livre interação dos homens no mercado, e de que a desigualdade dela resultante deve ser aceita como o produto de uma harmonia natural ou equilíbrio das tendências econômicas inerentes ao jogo da oferta e da procura dado pela concorrência entre os agentes no processo de produção e troca. Isso seria natural e, portanto, ético. Para os liberais ultraconservadores, a naturalidade desse processo deveria ser aceita como justa qualquer que fosse o seu resultado. Malthus foi o maior defensor dessa moralidade natural.
Malthus (1963, p. 25) elabora uma ética fundada na natureza para justificar a desigualdade e a miséria. Nesse sentido, ele propõe a lei da população. Segundo esta, um agrupamento humano cresce em progressão geométrica: 1, 2, 4, 8, 16, 32, 64... e com uma rapidez muito maior do que
o crescimento dos meios de subsistência, que se daria em progressão aritmética: 1 2, 3, 4, 5, 6... . Ocorreria, portanto, um desequilíbrio entre os recursos naturais e as necessidades dos indivíduos, e o resultado seria a miséria de grande parte da população. Ele é pessimista em relação às condições de progresso econômico e moral da humanidade. Para o autor, quem
nasce num mundo já ocupado não tem direito a reclamar de nada. O mundo, lastima Malthus, é irremediavelmente drástico para os miseráveis. Para estes, não há lugar no banquete da natureza. Eles serão renegados pela própria essência das coisas. A natureza intima, define a sorte dos indivíduos, e não tarda a executar sua sentença. Assim seria justificado, pela própria necessidade brutal da realidade, o aumento da mortalidade devido à fome. De acordo com o autor, nada se poderia fazer para superar tais condições. Qualquer solução pública para melhorar tal situação seria apenas um paliativo indevido.
Malthus justifica moralmente a miséria gerada pelo liberalismo econômico. Mas esse tipo de visão sombria do mundo liberal e da necessidade da miséria que ele gera foi questionado já por Adam Smith. Este autor não escreveu apenas um tratado sobre a economia, mas também sobre a moral. Sua defesa da ordem capitalista filia-se à tradição de pensamento moral iluminista.
Com os filósofos escoceses, durante o Século XVIII, surgiram novas teorias morais como parâmetros para a ação pública. É destacável, nesse contexto, a idéia de senso moral inato e comum. A concepção de uma faculdade moral específica apareceu na obra de Shaftesbury (1671-
1713), intitulada Investigação sobre a origem de nossas idéias de beleza e virtudes, em 1725. Segundo esse autor, Deus proveu os seres humanos de um senso moral para se orientarem. Trata-se de um senso de beleza e de ação. Os juízos de valores fundar-se-iam nesse senso moral e não nas operações intelectuais. Nesta mesma linha de concepção da ação, o pensador Hutcheson (1694-1746) propõe que o senso moral humano é essencialmente altruísta. A suposição de um senso moral e estético preconiza uma espécie de harmonia moral que produziria um consenso a respeito da boa ordem social. Essa filosofia tornou-se uma base para o combate à concepção de indivíduo belicoso, que foi defendida por Hobbes.
É destacável também, no contexto dessas discussões de filosofia moral, o pensamento de Mandeville (1670-1733), nascido nos Países Baixos. Partindo da tese hobbesiana, ele visa provar o contrário do que propôs o autor do Leviatã. Conforme o texto Fábulas das abelhas, de Mandeville, publicado entre 1714 e 1729, o resultado da busca egoística do interesse individual, de forma surpreendente, beneficiaria toda a sociedade. Segundo a conhecida fórmula do autor, que aparece como subtítulo de sua obra, os “vícios privados” produziriam “benéficos públicos”.
Sendo assim, as paixões e os impulsos egoístas são os motores da economia. Portanto, não se deve reprimi-los para que se preserve a prosperidade social (Nicol, 1992, p. 16).
Na segunda metade do século XVIII, surge a filosofia moral de Adam Smith (1723-1790), que se tornou mais conhecido por sua obra no campo da economia. A sua Teoria dos sentimentos morais, publicada em 1759, foi complementada com as idéias desenvolvidas na obra A riqueza
das nações, aparecida em 1776. Nesta obra, as idéias de Mandeville são apropriadas para explicar a natureza do mercado. Contrabalançando ao egoísmo, concebido como o motor da ação econômica, Smith concebe, em sua obra sobre a moral, a idéia de simpatia. Com isso, o autor combate não só a tese hobbesiana do egoísmo como algo básico da natureza humana,
mas também as concepções racionalistas da moral, para as quais a virtude depende meramente do conhecimento (Smith, 1992, p. 138 e ss.).
Segundo Smith (1992, p. 31), por mais egoísta que seja o ser humano, há algo nele que o levaria a se interessar pelo bem-estar dos outros, ainda que nada obtivesse a não ser o prazer da ação. A base desse sentimento de simpatia é a imaginação. Por meio dela, “nos colocamos no lugar do outro, concebemos estar sofrendo as mesmas dores, entramos, por assim dizer, em seu corpo, e, em certa medida, nos convertemos em uma mesma pessoa” (ibid., p. 32). Do sentimento de simpatia originária e da experiência de aprovação e reprovação de casos particulares de méritos ou deméritos, surgem regras gerais de condutas (ibid., p. 109-110). A partir de tais regras, as próprias tendências perversas do amor próprio poderiam ser corrigidas (p. 111). A idéia de sentimento moral terá uma grande repercussão nas teorias morais do Iluminismo francês. Com
Smith, a moral e a economia são reconciliadas: não haveria incompatibilidade entre egoísmo e o sentimento de simpatia. Assim, o autor forneceu uma justificativa moral para propor o liberalismo econômico como a melhor opção para a justiça e a prosperidade dos povos. Essa alternativa tem sido usada como contraposição ao pessimismo moral de Malthus. Os liberais
não-malthusianos apresentam-se dispostos a aceitar alguma forma de ajuda aos miseráveis. O mínimo social ganha sua razoabilidade dessa benevolência moral, supostamente inata e universal.
A teoria do mínimo social está em completa sintonia com a tradição liberal. Mas não se trata de fazer justiça em nome do ideal moral substantivo. Nesse sentido, a proposta liberal já estaria presente em Locke, para quem cada indivíduo tem direito àquela porção da abundância de outrem, “que possa afastá-lo da extrema necessidade” (Martins, 2003, p. 645). No Brasil, devido às diretrizes dadas ao poder público, as políticas sociais tendem a manter a estabilidade do capitalismo e suas iniqüidades históricas, mantendo intactas as estruturas geradoras da concentração de rendas. A renda mínima, na medida em que é concebida conforme a tradição econômica liberal, distancia-se e atravanca a implantação de um beneficio formulado como um “embrião de uma renda universal socialista”.