quarta-feira, 23 de março de 2011

Publico, privado, despotismo

Marilena Chaui
(...) Procuramos, em nosso percurso, assinalar as perplexidades contemporâneas quanto à relação entre a ética e a política, perplexidades que se exprimem no sentimento da “crise dos valores”. Fomos observando os esforços para a ampliação do espaço público e para uma presença cada vez menor da ética no campo da política, em decorrência da separação gradual entre esfera privada e esfera pública. Foi nesse percurso que mencionamos a paradoxal transformação da figura do déspota no pensamento conservador (de tirano perverso a revolucionário corruptor) e no pensamento liberal (de tirano passional a democrata faccioso). Finalizamos com a menção de alguns fatos da política dos últimos oitenta anos que poderiam ser assim resumidos: como explicar que a criação da esfera pública pelo pensamento desembocou na privatização administrativa (o surgimento das grandes burocracias estatais) e na privatização política trazida pelo neoliberalismo? Como explicar que o alargamento do espaço público, proposto pelas revoluções socialistas, desembocou na publicização totalitária e autocrática (que procurou absorver e destruir o espaço privado)? Como explicar que, nos dois casos, a política deixou de ser encarada como práxis (imanência entre meios e fins) e passou a ser praticada como técnica (exterioridade entre meios e fins)? Como explicar que a normatividade ética e o moralismo tenham se tornado os critérios para avaliar políticas? Evidentemente, não possuímos respostas para essas questões. Tentativamente, escolhemos um fio condutor para examinar apenas um aspecto das perplexidades atuais, aquele sugerido pela presença do neoliberalismo e do pós-modernismo e a maneira como aparecem no Brasil.
Via de regra, a discussão pós-moderna enfatiza a perda de força explicativa dos “paradigmas” modernos, isto é, de modelos teóricos e sobretudo de categorias como os pares ou as dicotomias sujeito/objeto, natureza/cultura, signo/ significação, totalidade/individualidade, público/privado, burguesia/proletariado, reforma/revolução, sociedade civil/Estado. Em resumo, todos os termos que empregamos até aqui perderam capacidade explicativa. Alguns consideram suficiente realizar a “desconstrução” dos conceitos. Outros estão à procura de novos “paradigmas”. Antes, porém, de prosseguirmos nas mazelas do pós-modernismo, vale a pena retomar algumas distinções que foram apenas sugeridas ao longo deste texto, sem que tivessem sido melhor explicitadas.
Até aqui, falamos em modernidade e modernismo como se se tratasse do mesmo fenômeno. Convém, agora, procurar distingui-los, no que for possível, uma vez que consideraremos o modernismo uma figura da modernidade (como, aliás, cremos ser o caso do pós-modernismo). Simplificando extremamente o que em si é de extrema complexidade, diremos que a modernidade é um projeto que se desenvolve durante o processo de desenvolvimento e queda do Antigo Regime ou das monarquias absolutas (cuja cronologia é diversa para os vários países europeus), enquanto o modernismo poderia ser datado a partir da revolução e da reação conservadora de 1848 e, finalmente, o pós-modernismo estaria datado a partir dos anos 70 de nosso século, sob os efeitos das mudanças do modo de produção capitalista (a chamada sociedade pós-industrial), do esgotamento da principal manifestação política do século (as revoluções comunistas) e do enfraquecimento de um novo sujeito político que entrou em cena nos anos 60 (a contracultura dos movimentos sociais).1
Ainda de modo bastante simplificador diremos que o liberalismo é o pensamento predominante da modernidade; o marxismo, do modernismo; e o neoliberalismo, do pós-modernismo (sendo sugestivo que o pensamento político se tome por uma espécie de revival — é “neo” — enquanto as artes, a cultura, as teorias e práticas sociais se tomem por uma superação — são “pós”).1
Diremos, por fim, que os modernos e modernistas estão convencidos de que é possível colocar o particular e o contingente sob as determinações do universal e do necessário, sem que isso os destrua em sua particularidade e contingência, mas fazendo-os ganhar sentido mediante a passagem pela universalidade e pela necessidade. Em contrapartida, os pós-modernos afirmarão a irredutibilidade do particular e do contingente e o caráter ilusório (mistificador e destrutivo) do universal e do necessário. Se obedecermos aos critérios dos “paradigmas”, diremos que o liberalismo opera com a lógica da identidade, o marxismo, com a contradição dialética, enquanto o pós-modernismo neoliberal invoca a lógica das diferenças para desfazer a antiga idéia da razão. Isso não significa que o liberalismo não tenha lidado com contradições e diferenças, mas sim que tratou as primeiras como conflito e as segundas como diversidade; nem que o marxismo não tivesse operado com identidades e diferenças, mas sim que considerou as primeiras como aparência e as segundas como momentos da contradição; nem, afinal, que o neoliberalismo não lide com identidades e contradições, mas sim que procura reduzir as primeiras e as segundas a ilusões racionalistas, isto é, as racionalizações da diferença. Em outras palavras, modernos e modernistas, na tensão entre essencial/acidental, efêmero/eterno, teriam feito a opção pela Essência contra a Aparência, enquanto os pós-modernos teriam feito a opção inversa, deslocando o lugar anteriormente atribuído à Ilusão. O liberalismo acusou o marxismo de haver promovido a síntese totalitária dos termos; o marxismo, por seu turno, demonstrou que o liberalismo forjou uma síntese fetichizada e alienante dos termos. O pós-modernismo critica ambos pela idéia mesma de síntese, tida como suprema violência desejosa de destruir a indeterminação do real.
Para nosso tema, interessa observar por onde passa o corte que separa liberalismo (moderno) e marxismo (modernista), de um lado, e neoliberalismo (pós-modernista), de outro. Esse corte passa pela intenção dos dois primeiros de fazer surgir e consolidar um espaço público e pelo abandono dessa intenção por parte do último. Alargamento do espaço público e encolhimento do espaço público distinguem modernidade e pós-modernidade. Evidentemente, como já observamos, a intenção liberal e ilustrada não pode cumprir-se porque a ética da utilidade e do interesse (a presença do mercado capitalista fundado na propriedade privada dos meios de produção), a fragilidade da teoria contratual do Estado (a substituição da liberdade pelas liberdades ou franquias), a crescente presença do Estado na sociedade civil (pela intervenção direta sobre a economia e pelo desenvolvimento de uma burocracia poderosa baseada na hierarquia e no segredo) e a submissão da opinião pública aos imperativos da sociedade administrada e da indústria cultural puseram em xeque os princípios ético-políticos do liberalismo (o Estado do bem-estar e a intervenção estatal na economia foram os sinais do fracasso liberal).
Por seu turno, o marxismo viu sua utopia emancipatória desmanchar-se sob os efeitos da burocratização e do totalitarismo. Se o liberalismo não pode evitar a crescente privatização do público (as liberdades, em lugar da liberdade; os contratos fundados no direito privado, em lugar do predomínio do direito público), o marxismo foi forçado a assistir a destruição da esfera privada pela invasão total do Partido e do Estado para produzir uma sociedade organicamente cimentada por um sistema de funções e controles, supostamente sem rachaduras, sem conflitos e sem diferenças internas. A sociedade unidimensional e administrada sob o tacão do Plano e dos serviços secretos de informação, a transformação dos indivíduos em Trabalhador Coletivo e militantes de células partidárias verticalizadas e ligadas a um centro onde o social, o político, a lei e o saber se tornaram idênticos, eis como a experiência totalitária destruiu tanto o espaço público quanto o privado.
O pós-modernismo neoliberal pretende dar as costas a esses dois fracassos da modernidade. Seu debate principal tem como alvo o modernismo e, portanto, do lado liberal, a crítica se dirige ao modelo administrativo (empresarial e estatal) trazido pelo fordismo e, do lado totalitário, ao modelo burocrático-administrativo trazido pela idéia de Plano e de necessidade histórica. A isto acrescente-se também a crítica ao marxismo, encarado como “metateoria” repressiva e mistificadora, particularmente no que se refere aos conceitos de alienação (pois este pressupõe a existência de um sujeito, de uma consciência centrada e significativa que se aliena) e de fetichismo da mercadoria (pois este pressupõe que as relações sociais entre pessoas tornaram-se relações sociais entre coisas).
Alguns exemplos podem ajudar-nos a acompanhar a ruptura pós-moderna em face do marxismo. Assim, a pergunta sobre o fetichismo poderia ser formulada da seguinte maneira: como passamos a depender objetivamente, em todos os detalhes de nossas vidas (sentimentos, trabalho, cotidiano, artes, ciência), de outras vidas inteiramente desconhecidas e opacas, totalmente escondidas e mediadas por relações impessoais? A resposta marxista foi a teoria do fetichismo da mercadoria para arrancar o véu da superfície social. Os pós-modernos consideram que não há máscara alguma e que a valorização da intimidade pode corrigir a opacidade trazida pela sociedade de massa. O marxismo procurava compreender como o dinheiro se torna mercadoria que representa todas as mercadorias, um meio que se torna o fim de todos os desejos. Os pós-modernos consideram o dinheiro um significante e não significado (força de trabalho, trabalho social), uma ficção e não uma função (representar), um signo e não um valor (ético, estético). O marxismo mostrava que a conversão do trabalhador em força de trabalho assalariada e alienada o transforma numa alteridade (o Outro do Capital, a mercadoria como seu outro). Os pós-modernos fazem da fragmentação social e da alteridade econômica entes dotados de peso ontológico: o Outro é um ser.
Ao vincularmos pós-modernismo e neoliberalismo quisemos sugerir que o primeiro não surge no vácuo e sem bases materiais. Nascido do rescaldo das lutas dos anos 60 — a contracultura em oposição à racionalidade tecnológica e burocrática e a todas as formas de autoritarismo; o cosmopolitismo em oposição aos particularismos localistas; a resistência à hegemonia da alta cultura modernista e ao hi-tech —, o pós-modernismo se constrói exprimindo a grande mudança do modo de produção capitalista que alguns designam com a expressão “acumulação flexível do capital”, em oposição ao keynesianismo e à organização industrial fordista.
Em linhas muito gerais, a economia neoliberal caracteriza-se pelo abandono de um princípio keynesiano (intervenção do Estado na economia e endividamento estatal para distribuição da renda e promoção do bem-estar social, diminuindo o excesso das desigualdades) e um princípio fordista (planejamento, funcionalidade, organização do trabalho industrial sob a forma do planejamento de longo prazo, centralização e verticalização das plantas industriais, grandes linhas de montagem concentradas em um único espaço, formação de grandes estoques, idéia de racionalidade e durabilidade dos produtos, política salarial de promoção do trabalhador e ampliação de sua capacidade de consumo). Privatização, de um lado, desregulação do mercado, de outro, rompem com o princípio keynesiano. Desintegração vertical da produção, tecnologias eletrônicas, diminuição dos estoques, velocidade na qualificação, desqualificação e requalificação da mão-de-obra, aceleração do turnover da produção, do comércio e do consumo pelo desenvolvimento das técnicas de informação e distribuição, proliferação do setor de serviços (ênfase em pequenas empresas de subcontratos de serviços e com alta competitividade, crescimento da economia informal e paralela) e novos meios para prover serviços financeiros (a desregulação econômica, isto e, os grandes conglomerados financeiros, e novos instrumentos para o mercado financeiro, formam um único mercado mundial com poder de coordenação financeira) rompem com o princípio fordista. Cresceu o consumo de serviços e diminuiu o consumo de bens, e no consumo surgiu inconteste o mercado da moda, veloz, efêmero e descartável.
As mudanças do modo de pensar, sentir e agir formam um mundo pós-moderno onde prevalece, no dizer de Harvey, a “compressão espaço-temporal” (o conto, em vez do romance; o paper, em vez do livro; o videoclip, em vez do documentário; o localismo, em vez do cosmopolitismo; mercado da “tradição” e mercado da imagem). Para o que nos interessa aqui, o fenômeno mais importante é a passagem do espaço público à condição de marketing, merchandising e midiazação e a do espaço privado à condição de privacidade intimista, mas sobretudo a perda de fronteiras entre ambos, abrindo comportas para formas meditas do despotismo.
A peculiaridade pós-moderna — o gosto pelas imagens — se estabelece com a transformação das imagens em mercadorias, isto é, em lugar de colocar um produto no mercado, coloca-se uma imagem com a finalidade de manipular o gosto e a opinião. A publicidade não opera para informar e promover um produto, mas para criar desejos sem qualquer relação imediata com o produto (a imagem vende sexo, dinheiro e poder). A própria imagem precisa ser vendida, donde a competição enlouquecida das agências de publicidade que sabem que uma imagem é efêmera e que seu poder de manipulação é muito limitado no tempo, sendo imprescindível seu descarte e troca veloz. Na política, as imagens tornam-se muito sofisticadas e complexas porque precisam garantir, simultaneamente, estabilidade e permanência ao poder e sua adaptabilidade, flexibilidade e dinamismo para responder às conjunturas. A competição pública não se faz entre partidos, ideologias ou candidatos, mas entre imagens que disputam valores como “credibilidade”, “confiabilidade”, “respeitabilidade”,’ ‘inovação’ ‘,“prestígio”. Essas são as novas virtudes do novo bom governante. As eleições presidenciais de 1989, no Brasil, são o melhor exemplo do pós-modernismo no espaço público.
Ora, havíamos visto que a marca do despotismo encontrava-se na moralização do poder (as virtudes da corporificação e personalização do poder identificado com a figura do governante). É exatamente isso que procura o neoliberalismo pós-moderno: à veloz dispersão e fragmentação da esfera privada do mercado e à veloz desintegração do espaço público sob os imperativos da dispersão econômica, a política procura contrapor o centro identificador perdido e o localiza na pessoa-em-imagem do governante — no ser-em-representação, de que falava Pascal. Parte integrante do universo da mídia — imagem e moda, publicidade e manipulação do desejo —, a política se privatiza: a vida privada do governante ocupa toda a cena pública e, como o antigo imperador romano, seus gostos e preferências à mesa, na cama, na praça desportiva, em sua biblioteca, com seus animais de estimação e sua família são cotidianamente exibidos para o julgamento fascinado dos cidadãos. Qual imenso Narciso, como o tirano de La Boétie, o governante identifica-se com o poder, torna-se centro do saber, da lei e da direção social. Por isso a privatização do público se realiza pela perda de sentido e de poder de todas as instituições políticas capazes de servir como mediação entre o poder executivo e a sociedade. Privatização significa desinstitucionalização do espaço público e corresponde ao fortalecimento dos centros privados onde se dá a decisão econômica e ao enfraquecimento dos Estados nacionais.
No Brasil, o pós-modernismo cai como luva. De fato, a política neoliberal é conservadora, contrária aos direitos sociais e civis, contrária aos movimentos sociais e à divisão dos poderes. Se cai como luva num país como o nosso é porque a sociedade brasileira sequer chegou aos princípios liberais da igualdade formal e das liberdades e muito menos aos ideais socialistas da igualdade econômica e social e da liberdade política e de pensamento. Sociedade sem cidadania, profundamente autoritária, onde as relações sociais são marcadas com o selo da hierarquia entre superiores e inferiores, mandantes e mandados, onde prevalecem relações de favor e de clientela, onde inexiste a prática política da representação e da participação, a sociedade brasileira sempre teve fascínio pelo populismo como forma da esfera pública da política. O populismo, como se sabe, opera pela relação direta e imediata entre o governante e o povo”, à distância das mediações institucionais, alimentando o imaginário messiânico da salvação e o imaginário feudal da proteção. Assim, no ponto mais alto da contemporaneidade — o pós-modernismo —‘ encontramos uma formulação do público que veste perfeitamente a mais velha e anacrônica tradição política brasileira. O chefe populista tem uma relação despótica com a sociedade (pai, “coronel”” doutor” competente, messias dos pobres e descamisados) e pode, agora, ir recoberto com os paramentos do que há de mais moderno — aliás, pós-moderno — quando fabrica sua imagem e seu poder com os recursos da publicidade pós-moderna.
Que se passa na esfera privada? Os movimentos sociais tornam-se cada vez mais “específicos” (cada vez mais “diferentes”) e cada vez mais localistas. A intimidade torna-se um valor como resposta ao anonimato de massa e à insegurança gerada pela flutuação incessante do sistema ocupacional e do mercado de mão-de-obra. A busca da satisfação imediata dos desejos, num universo de compressão temporal e de velocidade do mercado da moda, fortalece a competição e o narcisismo. Insegurança quanto ao presente e ao futuro, competição, infantilização pela propaganda, perda dos referenciais sócio-econômicos que ofereciam identidade de classe ou de grupo, tudo contribui para a desaparição (lá onde havia) e para a não-aparição (lá onde não havia) de formas de sociabilidade mais amplas e generosas. Os movimentos sociais duram o tempo em que dura a demanda que, uma vez satisfeita, dispersa os que estavam unidos numa ação.
Quatro traços parecem marcar a esfera privada pós-moderna: a insegurança, que leva a aplicar recursos no mercado de futuros e de seguros; a dispersão, que leva a procurar uma autoridade política forte, com perfil despótico; o medo, que leva ao reforço de antigas instituições, sobretudo a família e a pequena comunidade da “minha rua” e o retorno a formas místicas e autoritárias de religiosidade; o sentimento do efêmero e a destruição da memória objetiva dos espaços, que levam ao reforço dos suportes subjetivos da memória (diários, fotografias, objetos), fazendo, como disse um autor, com que a casa se torne uma espécie de pequeno museu privado. No caso do Brasil, além dos traços anteriores, reforça-se a ética da desigualdade: são meus iguais, minha família, meus parentes e meu pequeno círculo de amigos, enquanto os demais são o “outro” ameaçador OU estranho. Se a “lei de Gerson” pode funcionar é porque, malgrado os pruridos morais de seus praticantes, ela exprime a solidão e o medo diante de uma sociedade sentida como perigosa e hostil.
É interessante observar a maneira como a pós-modernidade acaba determinando o próprio esforço e pensamento dos que ainda desejam ser modernistas e modernos.
Arendt (do lado liberal), Adorno e Horkheimer (do lado marxista), por vias diferentes, haviam concluído que a utopia do espaço público, desejado pela emancipação marxista, seria impossível em decorrência do princípio mesmo que orientava a sociedade fritura: o Trabalho Social. Seja, como dizia Arendt, porque o marxismo não teria como acender ao espaço público da práxis (a política) por ficar preso ao labor (esforço biológico de sobrevivência e reprodução da espécie) e ao trabalho (esforço heterônomo da técnica); seja, como diziam Adorno e Horkheimer, porque o marxismo (entenda-se leninismo taylorista e stalinismo stakanovista) prendeu-se a uma categoria inseparável da razão instrumental, da dialética do iluminismo e da sociedade planejada e administrada. Ora, quando lemos os textos mais recentes de economistas de origem marxista, percebemos dois vetores principais de análise para livrar-se do Trabalho como categoria central: contra a razão instrumental-administrativa, encarnada na idéia de Plano, erguem a idéia de um mercado socialista (socializado) como esfera pública (e não privada; como no mercado capitalista; nem estatal, como no totalitarismo); contra a idéia do trabalho como centro regulador da nova sociedade, oferece-se a idéia de direitos do consumidor, isto é, o centro não é a produção (como queria Marx), mas o consumo (como quer o neoliberalismo). Assim, o momento da escolha e da troca seria o regenerador do socialismo no plano econômico.
Quando examinamos os textos mais recentes de Habermas, crítico ferrenho do pós-modernismo como irracionalidade e defensor da continuidade do “projeto da modernidade”, observamos que, ao contrário do que aparecia em suas antigas obras, agora também foi abandonado o “paradigma” do trabalho pelo da linguagem, em cujo centro encontra-se o ideal da comunicação ativa e veraz, utopia de um novo espaço público do qual a ética não estaria ausente, uma vez que a decisão de atividade e veracidade dos argumentos entre os interlocutores seria uma decisão ética anterior à entrada no espaço público.
Notamos, assim, que dois temas privilegiados pelo pós-modernismo — o consumo e os jogos de linguagem —, isto é, dois temas do campo da circulação — mercadorias e palavras — rondam os que ainda desejam manter o projeto modernista e acabam determinando a maneira mesma como se debatem numa problemática cujos termos, afinal, foram postos pelo pós-modernismo.
Do modo-de-produção a formas ético-políticas de interação social, tal poderia ser o resumo do percurso de uma marxista, seguidora de Habermas como Agnes Heller. Em The postmodern political condition, Heller procura um espaço público onde operam as virtudes cívicas e os princípios políticos da democracia. Corno ficar satisfeito numa sociedade de insatisfação? indaga ela (a própria pergunta é sugestiva, ao fazer da satisfação o motto democrático). A resposta é urna ética (de estilo kantiano) e uma política (de estilo socialista) que possam equilibrar a “lógica da demanda” (o querer de cada um) e a “lógica do necessário” (a busca da autodeterminação, da autonomia e da liberdade). O equilíbrio, que somente a democracia será capaz de trazer, dependeria da exposição em público, da discussão em público, da deliberação em público e do reconhecimento público dos conflitos entre as duas lógicas. A isegoria seria restaurada e não estaria descartada a utopia da bela cidade ética. No caso de Heller, como dos marxistas que buscam um mercado socialista baseado no direito do consumidor, a preocupação está voltada para os indivíduos (não para classes sociais) e seus desejos, carências e direitos. Admite-se o conflito, mas aposta-se na chegada progressiva ao consenso, tema preferencial da política neoliberal.
Lógica da circulação em lugar da produção; lógica da comunicação, em lugar do trabalho; lógica da satisfação-insatisfeita dos indivíduos, em lugar da luta de classes — eis alguns exemplos de como a ideologia pós-moderna passou a determinar o pensamento dos “últimos modernos”.
Estamos confrontados com o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado que, do ponto de vista da economia, tornou-se espaço mundial (os grandes conglomerados transnacionais, os centros planetários de decisão financeira, a compressão temporal, trazida pelos satélites, e a geopolítica renascida com a compressão do espaço).
Quando se inicia o filme O declínio do Império americano, uma das personagens (a historiadora que escrevera um livro com este mesmo título), assumindo um tom que lembra Tácito, HegeL e Gibbons, afirma que dispomos sempre de um sinal para avaliar a queda ou o começo do fim de um poder político enquanto político. Este sinal, diz ela, foi percebido no crepúsculo da democracia grega, no final do Império romano e na longa agonia do Antigo Regime. Pode ser percebido agora, no “declínio do Império americano”: trata-se do momento em que a sociedade e seus pensadores voltam-se primordialmente para as relações pessoais, para os indivíduos e suas paixões, carências, demandas e interesses, para a vida privada, desinteressando-se das preocupações cívicas e políticas. Família, religião da salvação, amor, juventude, felicidade, moral tornam-se assuntos preferidos. Olha-se com profunda desconfiança para a política, vista como ilusão, mistificação e corruptora dos costumes; critica-se a sociedade por seu egoísmo, por ser repressora dos sentimentos e da espontaneidade, dotada de mecanismos invisíveis para a obtenção da obediência; fala-se na cisão benfazeja entre o indivíduo e a comunidade mais ampla, defende-se o direito à vida feliz, em geral identificada com o “retorno à Natureza”.
Microfísica dos poderes e dos discursos, “ecologia mística”, obsessão narcísica pelo corpo sadio, belo e jovem, elogio da família e das religiões de possessão extática: eis alguns dos temas preferenciais do nosso tempo. Mas, teremos de escolher entre a idealização da bela cidade ética perdida e a volatilização do espaço público sob o manto protetor da intimidade... exibicionista? Que sentido teria a palavra “declínio”? Parece-nos que o risco que corremos neste final de milênio perplexo encontra-se noutro lugar: no rearranjo, em escala mundial, das forças conservadoras que poderão capturar “mal-estar na cultura” para convertê-lo em amortecedor benévolo do conformismo e da resignação sem esperança.

1. Essa “periodização” é bastante contestável e não pretendemos tomá-la como rigorosa e fundamentada. Está sendo proposta apenas para facilitar a análise. Assim, por exemplo, um autor como Perry Anderson considera as monarquias absolutas não como modernas e sim como última expressão do feudalismo. O historiador Amo Mayer julga que o Antigo Regime termina apenas com a guerra de 1914-1918. Um conservador como François Furet nega que tenha havido a Revolução francesa (senão como insurgência popular de superfície), pois a burguesia já criara a modernidade no interior do Antigo Regime. O debate é longo e sugerimos ao leitor a consulta de Perry Anderson, Linhagens do Estado absolutista (São Paulo, Brasiliense, 1985); Colin Mooers, The making o! bourgeois Europe (Londres, Verso, 1991); François Furet, Pensando a Revolução francesa (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989); Eric Hobshawm, Echoes o! lhe Marseillaíse (Londres, Verso, 1990); George Cominel, Rethinking the French Revolution (Londres, Verso, 1987); Olivier Betouné e Aglaia llartig, Penser l’ histoire de la Révolution (Paris, La Découverte, 1989); Amo Mayer, A força da tradição: persistência do Antigo Regime (São Paulo, Companhia das Letras, 1987). Também a data proposta para o modernismo não é tranqüila, uma vez que, como dissemos, há autores que não poderiam admitir 1848 como referência e deslocariam a data para a Primeira Guerra Mundial. Sobre o problema, sugerimos ao leitor que consulte, além de Marx evidentemente, Walter Benjamin, Illuminations (Nova York, 1969); T. Adorno e M. Horkheimer, Dialética do Esclarecimento (São Paulo, Brasiliense, 1986); Marshall Berman, Tudo o que é sólido desmancha no ar (São Paulo, Companhia das Letras, 1986). Finalmente, o pós-modernismo poderia ter sua data recuada para o final dos anos 60, em lugar de ser datado nos meados dos anos 70, uma vez que crítica dos “paradigmas”, da razão e do centro ordenador, do Estado como determinante do poder, assim como a defesa das dcscontinuidades, rupturas, diferenças e alteridades já aparecem nos anos 60. Sugerimos ao leitor a consulta de David Harvey, The condition of postmodernity (Cambridge, Basil Blackwell, 1989); J. Arac, Postmodernism and politics (Manchcster, 1986); J. Baudrillard, L ‘Amerique (Paris, 1986); W. Halal, The new capitalism (Nova York, 1986); F. Jameson, “Postmodernism or lhe cultural logic of late capitalism”, New Left Review 146 (1984); P. Burgcr, “O declínio da Era Moderna”, Novos Estudos Cebrap 14 (1986); F. Lyotard, O pós-moderno (Rio de Janeiro, José Olyrnpio, 1986); Vários Autores, Pós-modernidade (Campinas, Unicamp, 1987); A. HelIer, Tbe postmodern political condítion (Cambridge, Basil Blackwell, 1988.

2. Novamente é bom observar a fragilidade da tipificação” que estamos oferecendo. Bastaria a cronologia bruta para contestá-la empiricamente: Weber teria ficado fora do modernismo, assim como Freud, para mencionar apenas dois nomes entre muitos outros. A “classificação” apresentada visa apenas a sugerir qual o pensamento político que organiza para os demais a adesão, a critica ou a recusa, servindo de referencial predominante para as interpretações das práticas sociais, econômicas, políticas e culturais.


Chaui, M. In: Novaes, A. (org.). Ética. São Paulo, Companhia das Letras / SMC, 1992, (excertos, p. 382- 390).

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